Hoje eu vi uma mulher com ar triste tirando uma cópia em papel A3 de um cara tocando guitarra ou talvez baixo, não deu para definir porque vi de longe a fotografia. Por pouco ela não chorou vendo a foto sair com toda nitidez daquela imensa máquina de copiar. Engoliu em seco. E se apressou para sair do lugar, para pagar logo o serviço, provavelmente para distrair o choro antes que ele viesse assim em público. Pensei que talvez fosse a foto de um jovem que nas primeiras horas da manhã de hoje sofreu um acidente trágico numa rua conhecida de Boa Vista. O carro que o deixou em estado grave veio na contramão, dirigido por um homem alcoolizado. Dessas cenas que chocam e deixam a gente sem voz, intrigados com a nossa própria ignorância, a imprudência nossa de cada dia.
Pior para o outro jovem, que dirigia o carro em que o músico
se encontrava. Esse não sobreviveu ao choque, a esse curto circuito inesperado
que o deixou para sempre sem acordar. Um quase homem, um quase menino de 22
anos que tinha acabado de realizar um sonho: cursar uma faculdade de medicina.
A cidade toda soube, a cidade toda pasmou-se. E veio aquelas imagens na TV da
família velando o corpo, de dezenas de rostos aturdidos mirando o chão como se
procurassem no meio do asfalto, da terra, a explicação para algo que nunca resiste
a qualquer tipo de explicação: a morte provocada pela truculência do outro.
Veio o pesar e a indignação de todos.
E depois disso, o que há de vir? Vai ser apenas mais uma
morte no trânsito cada vez mais desordenado da cidade ou vamos tirar,
finalmente, lições em uma cidade condescendente com os abusos no trânsito, com
motoristas desrespeitando solenemente as leis, com motoqueiros diminuindo com
suas loucuras o espaço entre a vida e o cemitério, com pedestres que se acreditam
ainda em uma cidade do interior? Não existem blitz efetiva na cidade, só
arremedo de uma fiscalização que é driblada pela maioria. Os motoristas riem
das blitzes, ligando para os colegas marcando com um "x" no mapa onde
estes não devem circular. Os donos de
L200, de conversíveis acham-se donos do pedaço, os filhos de papai fazem de um
estacionamento bem próximo ao centro da cidade, ao lado de uma das avenidas
mais vistosas de Boa Vista, um circo de horrores, um palco de narcisismo e
intolerância.
A cidade que se acha pequena tem roupagem de metrópole,
orgulho de capital grande. E se é assim, os cidadãos orgulhosos precisam
deixar de lado o comportamento provinciano e assumir esse espírito também no
trânsito, precisa de aulas de civilidade, de motoristas de lotações que coloquem
a vida acima do lucro, de "pilotos" de veículos que os usem como meio
de transporte para o bem estar e não como metralhadoras giratórias, de
pedestres que entendam que o comportamento e a educação deles também fazem a
vida circular melhor nas ruas e avenidas. Devemos ser grandes no trânsito, usar
cinto de segurança, respeitar a faixa de pedestre, os luminosos, cumprimentar a
segurança, buzinar para a vida, enfim todas essas pequenas atitudes que, sabemos
de cor, precisam ser tomadas para que a harmonia nas ruas essencialmente se
faça.
A morte de um jovem estudante de medicina, a vida de um
outro garoto sobre uma fina lâmina têm que ficar na memória todos os dias de
quem anda na ruas, para que nos expiemos dos erros que cometemos no trânsito e
que, diariamente precisa, ser consertados. Deve servir de expiação para as
autoridades que colocam venda nos olhos e deixam que cenas trágicas se repitam
sem tomar atitudes mais drásticas. Nessa hora é preciso coragem. É preciso
estar atento e forte. É preciso coragem para dar um basta de vez no desrespeito
e horror e, enfim, sermos cidadãos orgulhosos guiando nossos carros e andando
nas ruas da cidade. Civilidade no trânsito: Boa Vista precisa.