terça-feira, 11 de setembro de 2012

Feito de silêncio e som


Gosto do silêncio. Da pausa perdida entre o estrondo e o ruído, aquele momento em que nos achamos encarando, perplexos e sem saída, a nós mesmos. O silêncio tem esse dom absurdo de nos aproximar do eterno, de nos levar a tocar um impalpável deus, qualquer que seja ele. No último fim de semana estive em Tepequém, um lugar mágico de Roraima onde céu, água e mata coreografam uma dança épica, gigante, feita de uma imantada intensidade, aquela que nos empurra, aturdidos e sem volta, para a nossa paquidérmica insignificância diante do universo. Somos grãos mesmo, não tem jeito. De vez em quando nos vemos assim e o silêncio é combustível para esse ponderado sentimento. Em Tepequém numa cachoeira, a do Paiva, que se desdobra infinitamente em quedas e quedas d'águas, em nichos generosos onde casais e famílias se aninham em quase preces, quase coitos, em quase comunhão, me afastei do burburinho para  beijar o silêncio. Ali, num desses desdobramentos, aqueles mais longínquos, onde a preguiça do homem prefere deixar esquecidos. Ali, toquei a pele do silêncio. E me refiz. Tem quem faça música respeitando o silêncio, fazendo dele um aliado, tirando da pausa o encantamento que é essencial nela e que ajuda a compreender melhor a beleza da melodia. É assim com The XX. É assim em Coexist (2012), o segundo trabalho de uma banda que há algum tempo deixou parte da crítica internacional boquiaberta. A arte de um trio que escarafuncha repouso nos breaks do mundo, como quem põe a cabeça na correnteza de uma cachoeira.

Clipe de "Angels", gravado em Tóquio:


Gosto cada vez mais da economia. Não aquela dos comentários dos telejornais de TV, aquela montada em equações e fórmulas matemáticas, de termos difíceis e estrangeiros, refletida no brilho do ouro e que se equilibra na lâmina afiada e cortante do papel moeda. Essa sempre me atordoou. Gosto daquela  que nos faz esnobar os excessos, a nipônica, de quem, low profile, consegue levar o navio sem tanta vela, sem tanto rum ou marujada. Como o cara do filme, não lembro o título, que trocou o inquietante molho de chaves que abria o mundo do escritório, da casa grande, do cofre, dos portões enferrujados, por uma única, a do carro, aquela que abria a porta de um mundo a se descobrir. Como o eremita que busca no isolamento, na fina flor do despojamento a chave da sabedoria. Tem quem faça música buscando na economia da sonoridade a riqueza do toque. Esse sim, verdadeiramente, o de Midas. É assim com The XX que, em seu segundo trabalho, cultivaram ainda mais suas pausas, seus silêncios, mergulharam na economia das notas musicais e do instrumental, em um minimalismo cheio de significados que transformam Coexist numa obra tão prenhe de achados quanto a simplicidade permite.

O trio sempre vestido de preto: mais um acerto
Silêncio e economia como motores de alta potência com muito óleo, reciclado, para queimar. The XX retorna ao mercado, aos ouvidos saudosos, com uma continuidade do debut, XX (2009), aperfeiçoando aquilo que parecia um ensaio. Um belo e marcante ensaio, diga-se de passagem, digno dos elogios e louvores que ajudaram a colocá-lo merecidamente como um dos dez melhores álbuns  dito "alternativos" feitos naquele ano. Fizeram também parte da minha claudicante lista. O trio britânico seguia ali, com elementos musicais mais contemporâneos, a trilha aberta e muito bem alimentada por bandas como M People, Style Council e Faithless, que esbanjavam elegância e sensualidade. Se aquelas exploravam a malícia transparente do rhythm and blues, do soul e do funk, The XX amparava-se na hipnose das batidas eletrônicas e em melodias com cadência e respiração muitas vezes comparadas, na época, por encantados resenhistas ao ato sexual. O grupo hoje é formado por Romy Madley Croft (vocal e guitarra), Oliver Sim (vocal e baixo) e Jamie Smith (bateria, programação e produção). No trabalho lançado em agosto, os três continuam afinados em sua música de contratempo das coisas que atropelam a alma. Mais calmos talvez, mas da mesma forma impactantes e 
modernos.

Ouça a bacana "Tides":



Uma pá de gente argumentou, tão grávida de razão, que o sucessor do cultuado XX é muito parecido com este, que os ingleses não inovaram, repetindo químicas e alumbramentos. Coexist é xifópago sim daquele. E sobre isso não há, a meu ver, o que se reclamar ou lamentar. Temos a afetiva tendência de cobrar uma evolução daquilo que amamos. Mas, como exigir isso de quem parece já ter nascido evoluído? Por que não navegar no mesmo mar manso que nos leva a paragens de beleza perene e substanciosa? Não concordo, além do que, com essa acusação de estagnação criativa. Essa pedra musical chamada The XX, acredito, não criou limo. O trio investiu com mais precisão exatamente naquilo que foi o que mais me chamou a atenção no disco e inspirou minha resenha: a grandiosidade dos silêncios e os arranjos e programações econômicos que refinaram a sensualidade tão evidente e vibrante da banda, o que de melhor, afinal, ela tem. Estão menos eletrônicos e mais cool. É assim com The XX. É assim, por exemplo, com "Angels", a linda composição que abre o trabalho com guitarra envolvente e a voz suave, devoradora, de Romy Croft pegando o ouvinte pelo âmago.

Novo disco do The XX gerou controvérsias
Mas, "Angels" é enganadora. A canção não revela a pegada mais matadora da banda que conta com o engenho de Jamie Smith para produzir uma sonoridade minimal e equilibrada. Em tons certos, beats, baixo e guitarra, são coadjuvantes comportados de belas melodias interpretadas, também na medida exata, pelos dois excelentes vocalistas do The XX. Romy e Oliver Sim desarmam a gente em exemplares indistintos e tocantes de mais uma boa lavra do grupo. Música sobre amores renhidos, romances desfeitos e distantes, como a climática "Fiction", com um riff de guitarra que lembra a ótima Interpol. É uma das grande músicas do disco, ao lado de "Missing", na qual o vocal da dupla se alterna, cada um fazendo uma bela cama para o outro deitar solenemente. É uma delícia ouvir ainda os dois cantando em "Tides", a minha preferida do disco. É uma das mais pesadas também, se é que podemos defini-la como tal. Aqui temos todas as virtudes do álbum, do início a capela, valorizando as pausas que precedem a beleza dos sons, ao baixo e guitarra pontuando habilmente uma melodia mais com o pé no chão da pista. E aí temos outras composições fortes, de bom gosto e elegância plena, como "Chained" e "Sunset" que ajudar a elevar ainda mais a qualidade da obra. Tudo parece, assim, orgânico em Coexist. Suas músicas são como partes indivisíveis de um corpo. Gosto disso. Gosto do álbum como gosto do silêncio e, cada vez mais, da economia. Gosto, enfim, do que me faz bem. 

Cotação: 4

O x da questão: veja se este link ainda está ativo:

http://uploaded.net/file/dl8r4tcd