segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Álbum iluminado

Gui Amabis é um operário dos bastidores. O músico talentoso e requisitado tem um trabalho que muitos já ouviram por tabela, mas raramente buscaram saber quem é. Pudera. Esse paulista é autor de trilhas sonoras para o cinema, arte normalmente subestimada pela maioria. É dele, entre outros, as malhas instrumentais que embalam as ações do norte-americano O Senhor das Armas, filme mediano de Andrew Niccol, e a apimentada carreira de Bruna Surfistinha, dirigido por Marcus Baldini, em versão de cores fortes e grande apelo popular. Amabis é um bom construtor de climas, aqueles que entram capilarmente pelos nossos ouvidos e contribuem para o sentimento completo das imagens. Esse exercício transpira por todos os poros do primeiro trabalho assinado pelo artista, o impactante Memórias Luso/Africanas(2011), um álbum que busca unidade no passado do autor e encontra potentes ecos no presente com sua estrutura moderna e marcante identidade.

A bela “Doce Demora”, com a não menos bela Céu no vocal:




Memórias Luso/Africanas
inspirou-se, segundo o próprio Gui Amabis, nas histórias de seus antepassados contadas por uma querida e inestimável avó, que o deixou há poucos anos. Retrospecto da trajetória de negros e portugueses, testemunhal intenso da miscigenação que gerou a vívida e complexa raça brasileira. Essa genealogia da qual Amabis faz parte transparece nas atmosferas e raízes de um álbum difícil de qualificar musicalmente. A alma negra, a febre imantada no medo de homens e mulheres que vieram da África em navios sinistros para moldar nosso jeito de ser, a relação com os lusos brutos e desgarrados da Europa, as tensões sociais do Brasil colonial transpiram em parte das composições do CD. Esse longo filme que conhecemos tão pouco é exibido em cenas musicais de arranjos exuberantes que beliscam múltiplas influências culturais, do batuque ao jazz, passando pela música árabe. O resultado é uma obra maiúscula, rica e de encantadora entrega.

O cuidado com a programação dos arranjos salta logo na primeira música do CD, a soturna “Dois Inimigos”, a única em que Amabis solta a voz pequena, com um teclado pesado, marcial e toques climáticos de sinos para contar uma luta que remonta a um Brasil ancestral, a uma “batalha que continua franca e aberta e trava na goela”. Trilha perfeita para cenas de navios negreiros. A memória de uma África colonizada que herdou seus filhos ao nosso país volta pulsante e imagética em “Imigrantes” em seu arranjo de sopros atmosféricos numa história de desilusão e dor e despedida. “Vou me embora daqui, por que aqui já não tem mais flores não/É irmão contra irmão, é o espinho da intenção”, canta com alma Tiganá, arrendondado pela participação da bela Céu, esposa de Amabis. E esse cinema de sangue negro está mais evidente ainda em “Para Mulatu”, com forte percussão, batuque explícito que serve de cama para um “causo” dos tempos de colônia brasileira, em que “mama fugiu do sinhô e a correnteza levou mama pros braços de avô”. Essa linda composição conta com um impressionante e equilibrado vocal do grande Criolo, que debutou recentemente em CD solo com o ótimo Nó na Orelha(2011).

Ouça a potente “O Deus que devasta mas também Cura”, com Lucas Santtana:



As memórias e heranças lusas, presentes nas letras das canções citadas acima comparecem sonoramente em menor grau no disco. Essa presença é mais sentida em “Orquídea Ruiva”, com letra e voz de Criolo. “É praticamente um rock árabe. A música portuguesa tem essa origem por conta da invasão moura que durou aproximadamente 800 anos”, explicou Amabis ao falar da música. As cordas sinuosas e flautas crescem aos poucos para desembocar num refrão forte e que lembra a pulsação do visceral Nação Zumbi. A música ajuda a dar essa liga, uma unidade que torna o CD quase temático em torno desse rastro luso-africano. Disse “quase”, porque Amabis sai dessa linha em algumas outras ótimas composições. Caso da linda “Doce Demora”, uma homenagem a filha do músico, canção que mergulha em plástica delicadeza, com as participações de Céu, mais uma vez no vocal, ao lado dos pernambucanos Siba e Dengue, baixista do Nação. Sem dúvida, uma das mais belas do disco.

Céu, na foto ao lado com o maridão, volta uma terceira vez para brilhar com sua voz roufenha na fabulosa e jazzística “Swell”, talvez a mais contemporânea e moderna do álbum. Tem a cara da cantora e de uma leva de artistas que soube muito bem explorar e misturar inteligentemente as sonoridades mais refinadas do planeta para construir um relicário de canções de difícil audição, mas de claro bom gosto. Parte dessa trupe está no disco de Amabis. Juntos, sob a coordenação desse compositor, engendraram o projeto do grupo Sonantes, com um álbum homônimo lançado lá fora e que ganha versão nacional este ano e que tive o prazer de resenhar aqui. O trabalho, de 2008, comungava a grande fase do irmão Rico Amabis, Céu, Pupilo e Dengue. Além desses e os outros já listados anteriormente, Memórias Luso/Africanas agregou outras feras que seguem essa trilha moderna e mais ousada, como a revelação Tulipa Ruiz, que brilha na leve “Ao Mar”, Regis Damasceno (do ótimo Cidadão Instigado) e Lucas Santtana, criador dos cortantes versos da poderosa “O Deus que Devasta mas também Cura”, a mais linda e emblemática música desse CD que já nasce clássico. Para ouvir e reouvir e destrichar aos poucos, como merece a obra, as tessituras e belezas propostas por um Amabis pra lá de inspirado. Vá com força.

P.S.: Fotos dos artistas que ilustram esta resenha foram feitas por Ariel Martini (www.flickr.com/photos/arielmartini/ ou www.arielmartini.com) em show de 9 de agosto de 2011 no Sesc Pompéia(SP).

Cotação: 5

Memórias ao seu alcance:

http://www.4shared.com/file/f-cbpk8A/DNA_Gui_Amabis__2011_-_Memrias.html

ou:

http://www.mediafire.com/?4nyrgbd1gbhbk7g