domingo, 26 de junho de 2011

Tapa na orelha

“Fique atento quando uma pessoa lhe oferece o caminho mais curto”. Papo reto, o aviso objetivo é dirigido para aqueles que moram nas regiões periféricas das grandes cidades e encontram nas drogas e trambiques um jeito fácil de se ganhar dinheiro, correndo todos os riscos que isso acarreta. Prisão, morte, dor, não merecendo, o pobre coitado, na maioria das vezes, nem sequer uma nota de roda pé nos jornais populares, aqueles que vivem de tragédias e violência. A máxima não vale, contudo, para a música de quem a deixou registrada em disco logo nos segundos iniciais da primeira canção. Nó na Orelha(2011) é o caminho mais curto para se chegar à arte robusta de Kleber Gomes, ex Criolo Doido, hoje só Criolo. Esse paulistano, muito conhecido nas Rinhas de MCs da capital de São Paulo, entrega ao público uma estréia solo de peso, com impacto parecido, ouso dizer, do lançamento de Enxugando Gelo (2003), incensado, merecidamente, trabalho do rapper B Negão. Os dois têm a mesma força e genialidade de quem une mensagem política e som brasileiro de qualidade com raro talento.

Assista a videografite de “Não existe amor em SP”, criado por Daniel Ganjamam:



Criolo é da estirpe dos guerreiros que usam a música como instrumento de denúncia, sem que, com isso, caiam na doutrinação ou no discurso chato. E o que é melhor com todo esmero na construção de melodias e arranjos bem acabados. Ou seja, o cara não está aí para brincadeiras e nem, justiça fosse feita, para ficar restrito às radiolas dos guetos. Seu som plural, pela proposta sincera e consistência, bem que poderia ganhar as rádios e os players da galera brasileira. O artista é, há duas décadas, parceiro e ativista do rap, gênero que tem um público cativo e fiel. Seu trabalho de estréia, com produção dos cultuados Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral, vai, contudo, muito além. Invade com autoridade e brilho outras praias melódicas, sempre com os pés fincados na black music. Sonoridades d’Angola, de Fela Kuti, samba, batuque, suingue com influência e alma negras. Navio negreiro que carrega também as mazelas que vitima principalmente aqueles cuja cor provoca preconceito e tratamento diferenciado por uma parcela medieval e burra da sociedade.

E é assim, com música de pegada irresistível e discurso afiado, que Criolo conquista o surpreso ouvinte que, como eu, não conhecia a poesia do sujeito homem. Em “Bogotá”, um afrobeat dançante de metaleira e percussão espertas, ele se inspira no movimentado universo dos muambeiros. “Vamos embora para Bogotá, muambar, muambê”, sugere a letra, com direito, na sequência da frase, a citação, com liberdade fonética, de Manuel Bandeira, “Vai ser melhor do que Pasargada, agradar até o rei”. A marcada “Subirodoistiozin” é outra canção meio jazzy, com letra cheia de gírias e expressões típicas de comunidades mais pobres, que critica a crueldade de um sistema no qual os viciados endinheirados são uma explícita ameaça: “Que contradição, quem tem tudo de bom é quem fornece o mal para a favela morrer”, diz a letra ácida. Existe quase sempre muita acidez no que escreve o cara, até mesmo naquelas composições com espírito mais light e romântico, como na linda “Não Existe Amor em SP”. Essa, uma ode à São Paulo urbanóide, dos “labirintos místicos, onde os grafites gritam”, mas que também tem suas armadilhas: “Postal tão doce, cuidado com o doce, São Paulo é um buquê”.

E a viagem musical de Criolo, depois de visitar o trip hop de “Não Existe Amor em SP”, passa por muitas encruzilhadas. Alcança o batuque africano na fantástica e discursiva “Mariô”, com refrão em ioruba e muitas referências na letra a ídolos como Chico Buarque e Fela Kuti. Repassa o dever de casa em dois rap inteligentes, “Grajauex”, poema concreto que brinca com as rimas possíveis com a sílaba “ex”: “os irmãos que tão com fome, desce três marmitex, sabão de coco não é bombom com protex(...)zona sul é um universo, e os vagabundos é belezex”, e na seca “Sucrilho”, cheia de ranço político e afirmação de identidade: “Calçada pra favela, avenida pra carro/ Céu pra avião e pro morro descaso”. Sem se prender a gêneros, Criolo vai ainda de samba na bacanéssima “Linha de Frente”, só no miudinho para despedaçar corações. Sambinha leve e cheio de graça que une percussão e metais de forma deliciosa. E desafia limites, beirando o brega na lúdica e abolerada “Freguês da Meia Noite”, a história de um homem apaixonado por uma confeiteira que sempre lhe oferece doces “furta cor de prazer”.

Ouça "Sucrilhos":



Criolo é um dos belos e grandes achados de 2011. De uma maturidade típica de quem tem um lastro musical de peso, o paulistano oferece um cardápio musical irresistível e bem temperado. Mesmo sem ter uma voz que marque, o artista compensa essa lacuna com canções de raro apelo emocional e bela engenharia instrumental. Nó na Orelha é nosso Brasil periférico com tintas universais, desenhado por um músico antenado com suas raízes e sensível com nossa mais crua realidade. Traz a herança de um povo que acorda para a cidadania. Tapa na orelha, nó na garganta. Esse cabra Criolo tem o que dizer e sabe como dizer. “Cada um sabe o preço e do papel que tem, de onde vem”, canta em “Bogotá”. Seu debut é obra incisiva, que já nasce clássica em sua diversidade sem fronteiras, sem preconceito. Desde já, ainda impressionado com o que ouvi, acredito que esse é um dos melhores discos nacionais do ano. Recomendo.

Cotação: 5

Se ligue no samba do Criolo doido:

http://hotfile.com/dl/115890191/5fb3ca1/Criolo_No_Na_Orelha.rar.html