domingo, 8 de maio de 2011

Outras palavras

Filhos de Itamar Assumpção e da poesia uni-vos para salvaguardar a beleza e ousadia da música brasileira. Esse desejo vive em ebulição em mim. Explico, saudosista: houve um tempo na década passada em que experimentar, reinventar a MPB era uma prática saudável e radicalmente instigante. De cabeças inconformadas surgiram provocações tão intensas e incompreendidas quanto os desvarios poéticos do negro Dito Itamar, o atonalismo canibal de Arrigo “Clara Crocodilo” Barnabé ou o caudaloso canto falado do Grupo Rumo. Os filhos dessa geração de 80, mesmo que mais comedidos, tentam hoje colocar suas garras pra fora. Aqui e ali, onde os cérebros foram irrigados pela inquietação. Privilegiados filhos, como Téo Ruiz e Estrela Ruiz Leminski, que beberam de rica fonte para fazer de sua arte um hiato em meio à indigência e trambicagem que marcam hoje nossa produção musical mais comercial. São Sons(2011) chega assim coberto de angústia criativa, honestidade e solta verbalidade. São sons e palavras a serviço de uma curtida sensibilidade.

Veja o vídeo da música "Ímpar ou Ímpar", do disco anterior da dupla:



Téo e Estrela não são parentes. Têm, coincidentemente, o mesmo Ruiz no sobrenome. São namorados de amiúde convivência, de levar a vida a dois colados no cotidiano das horas inteiras. Parceiros no trabalho e no amor, os dois têm berço e influências musicais invejáveis. Estrela, por exemplo, é, além de cantora, escritora e filha dos poetas consagrados Alice Ruiz, que tem participação no disco, e Paulo Leminski. Não é pouco. Téo é músico de carteirinha, desses talentosos que só conseguem viver à sombra das melodias. Arte aqui é oxigênio. O passado deu a ambos uma educação musical refinada. E, mais do que isso, entregaram-se ao micróbio da invenção. Em São Sons, o segundo e melhor distribuído álbum do projeto Música de Ruiz, é possível vislumbrar aquela busca pelo novo, presente nos grupos e artistas citados no primeiro parágrafo. Sem esconder uma certa angústia em acertar o alvo, o casal, com voz infelizmente pouco marcante, passeia por diversos gêneros musicais, procurando talvez encontrar a sua praia. Não encontram uma para ancorar o barco, mas mostram um inconformismo que enche o ouvinte da esperança de renovação.

Ouça "Chose":



Senão vejamos, o baião nervoso “Quirera”, com seu discurso raivoso sobre a indústria musical do jabá, aquela que paga os meios de comunicação para fazer “decolar” seus maquiados produtos, lembra o genial paulistano Itamar Assumpção, que marcou sua carreira pela verborragia e estrutura melódica singular. Percussão e sanfonas dão um falso ar nordestino a essa deliciosa música feita pelos curitibanos. “São Sons” tem musicalidade incômoda, com todos seus contrapontos e atonalidade. Os meninos usam bem sua metralhadora giratória e incansável. O jovem casal brinca com o samba em “Chapéu de Sobra”, entortando o ritmo, enriquecendo-o ainda com um trombone louco e experimental e com a fantástica voz de Ná Ozzetti, que integrou o grupo Rumo. Téo e Estrela vão de rock acelerado na muito boa “Chose”, que mistura violão, sanfona e guitarra pesada de forma magistral. Meu amigo de trabalho, Odeli Sampaio, que tem um super ouvido e é produtor de áudio, disse que a música foi mal mixada. Independentemente dos pecados técnicos, é uma composição impactante. Tem também melodia com jeitão de tango, envolvido pelo brega e pela brejeirice, na voz única de Kleber Albuquerque, na ótima “Verossímil”.

Tantos sonoridades diferentes são sons que os Ruiz oferecem como se quisessem expurgar as múltiplas influências. Como se tentassem decupar, ainda que de forma desordenada, toda aquela invenção musical que viveram em sua formação e que fez a cabeça dos dois. Só para contextualizar essa conexão criativa e mais experimental: Arrigo Barnabé é paranaense e sua música moderna tem raiz em Londrina. Itamar Assumpção foi parceiro de Alice Ruiz em composições maravilhosas. Ou seja, todos encontraram-se de alguma forma numa rica intersecção cultural. No caso de Téo e Estrela, é bom que se diga, contudo: não há intenção explícita de se fazer experimentalismo. O disco cede também espaço para canções com estruturas harmônicas simples, que podem tocar facilmente em rádios com programação dedicada à MPB, a exemplo das lentas e bonitas “Estilhaço” e “Reivento”. E se eles não provocam nenhuma revolução ou arroubos formais, mostram-se generosos na invenção das letras, destoando da pobreza poética das novas estrelas da música, tipo os jabazeiros Luan Santana, Cláudia Leite e outras bobagens congêneres que assolam as rádios e tevês brasileiras.

Se a juventude topasse ouvir canções bem estruturadas poeticamente como, só como exemplos rápidos, o rock “Chose” ou o lindo samba cadenciado “Parece”, sentiria que a palavra é um instrumento precioso para se fazer pensar e encantar. Na primeira música, Téo filosofa com propriedade e alguma raiva: “Se cada passo tem um tropeço, meu passado pelo avesso/Cada tempo seu invento, cada passo o seu intento/Eu faço desse passo o meu próprio alimento”. Na segunda, a letra com ecos políticos, ensina como criar rimas bacanas sem dificultar a leitura para os de vocabulário diminuto: “Parece muito fácil mudar a mente alheia, fazer reforma agrária, uivar para a lua cheia/ Parece fácil a beça distribuir a renda, curtir a natureza, mas a guerra tem pressa/Se é fácil, me diz, mudar para outro país, ver teu show sem pedir bis, entender o que fiz”. As letras são o que de melhor traz o disco, que têm sim melodias bem sacadas como “Ávida” e a já comentada “Chapéu de Sobra”, só para citar as que vieram mais ligeiro à minha memória. Mesmo que irregular, São Sons é um álbum que enxágua nossa alma, porque é irrequieto e tem conteúdo. Um trabalho que chama atenção pela energia criativa e as melhores intenções. Vale à pena acompanhar a trajetória promissora de Estrela e Téo. Acredito, cheio de fé: deve vir mais um punhado de boas composições por aí.

Cotação: 3

Tente baixar o disco por aqui, no controlCcontrolV:

http://www.mediafire.com/?krvsetk4x1t9ndy