terça-feira, 19 de abril de 2011

Tem um roberto dentro de todo brasileiro

O que falar do rei Roberto Carlos que já não tenha sido dito? Mas, também, como não comentar uma data tão significativa quanto os 70 anos desse artista que espelha com tanta profundidade a alma romântica brasileira? Quando me entendi gente que gostava de música e precisava me posicionar diante de todos os gêneros musicais e seus múltiplos artistas que enriqueceram nossas mentes e aqueceram nossos corações nas últimas décadas do século passado. Quando precisei me instalar em uma tribo, atrás de juvenil identidade, logo me coloquei ao lado de gênios da MPB então em franca produção criativa. Eram fins dos 70 e início dos 80 do século passado. Fiquei do lado da intelligentsia, numa época em que gostar de Roberto Carlos era meio demodê. Me aquartelei entre as estrofes preciosistas de Chico Buarque, os rompantes tropicalistas de Caetano Veloso, os mergulhos tribais de Gilberto Gil e os sentimentos telúricos de Milton Nascimento. Roberto era vaga lembrança do passado, no máximo um símbolo do capitalismo e de um populismo viciante que arrastava milhões de brasileiros.

Ouça “Sua Estupidez”, com Ná Ozzetti:



Cego por um sectarismo típico do adolescente anti-norte-americano, cheio de ideais na cabeça, não enxergava que todas aquelas milhões de pessoas que se debulhavam em choro ouvindo “Detalhes” e cantavam a pleno pulmões “Amada Amante” estavam certas. E foram ironicamente meus velhos ídolos que me ensinaram a tornar o Rei um novo ídolo para mim. Gal Costa cantando lindamente o sucesso “Como dois e dois”, Caetano cercando-se de um coro arrepiante para construir uma versão fenomenal de “Muito Romântico”. E, no futuro, ouvindo ídolos ainda mais recentes, a certeza de que havia cometido uma imensa burrice, quando imberbe, desprezando o poder daquele cara. Ná Ozzetti intensa desfragmentando “Sua Estupidez”, Chico Science criando novo suingue para “Eles estão Surdos” e até Adriana Calcanhoto revelando uma insuspeitável leveza na canhestra “Caminhoneiro”. Roberto Carlos é sim, e não aventureiros como Romário, o “Cara”. Além do que, um homem que torce pelo intrépido Vasco da Gama tem, no mínimo, bom gosto.

Ouça “Como 2 e 2”, com Gal Costa:



O que o tempo foi me revelando, ao passar dos anos, a cada ponto que o Rei ganhava comigo é que em toda a minha vida houve a presença dele, como uma trilha sonora que continua rodando ininterruptamente até hoje. A memória obscurecida na adolescência foi clareando em minha maturidade. Lá estava eu, garoto, no cinema, ao lado de colegas ruidosos da escola Marista, vibrando com as aventuras de um Roberto Carlos indômito, a la Indiana Jones, esmurrando bandidos mal-encarados e vencendo a luta contra o mal, personificado pelo grande ator José Lewgoy. O Rei estava lá embalando suavemente, nas ondas de um radinho de pilha roufenho, os namoros de pé de muro, protegidos pela penumbra amiga, de minhas irmãs mais velhas. Estava na voz afinada de minha mãe, me ninando e amaciando o trabalho na máquina de costura no cantarolar de “Jesus Cristo”. Estava na voz da lavadeira, do peão de obra, na moça desiludida de olhos tristes, no violão do rapaz que trocava a tímida cantada pelo melodia sedutora de “Como é grande o meu amor por você” tocada, cheia de dedos, no violão. Tanta gente rendida ao seu gênio, às suas canções tão diretas e tocantes quanto pode ser um amor infinito.

Escute “Detalhes”, com Roberto Carlos:



Lembro depois, mais tarde, quando já havia absorvido sem chancelas a importância do Rei, do show dele que assisti fervorosamente ao lado de minha extasiada mãe. Lá pelos meios dos 90. Roberto estava numa entressafra criativa, que, aliás, se arrasta até hoje. Mas, isso não importava muito. Era um momento que cultivava e ansiava desde muito, como um encontro afetivo com o passado musical que negara por tanto tempo. Como uma declaração definitiva de amor a minha mãe. Nós dois ali num ginásio lotado. Na maioria por mulheres, pessoas com mais de 30 anos. Ele todo de branco. Elas todas perfumadas em seus vestidos de gala. E a orquestra de Roberto agigantando o romantismo das canções. O tremendão ainda não voltara, por um pudor besta, a cantar seus agitados rocks de jovem guarda. Naquele instante para mim, tudo o mais poderia ir pro inferno. E tudo me parecia tão mágico naquela noite que tive vontade de sair, qual louco, dançando com minha mãe nos braços. Ali fiz as pazes de vez com Roberto. Hoje, ele completa 70 anos e toda essa memória veio à tona volumosa, emocionada, me arrastando para perto do eterno Roberto. Posso quase tocá-lo agora, quem sabe roubar uma daquelas rosas vermelhas que ele arremessa para as fãs. Posso, sim. Saúdo o Rei. Longa vida ao rei.

Cotação: 10

Ouça "Todos estão Surdos", com Chico Science e Nação Zumbi: