terça-feira, 5 de abril de 2011

Além da naftalina

Os fãs costumam ser superlativos quando falam do barba grande Sam Beam. A superlatividade é um pecado daqueles cegos pela paixão. Pecado substantivo. Esses cometem excessos que o desconfiado, franzindo o cenho, sempre passa pelo pente fino da razão. E é bom que a humanidade seja sim, feita de apaixonados intensos e devotados cartesianos. Nesse caso específico, melhor mesmo é abrir bem os ouvidos para tirar a prova dos nove. Exageros a parte, temos um artista sensível que criou culto, sua igreja própria povoada por um tanto de pessoas que amam a poesia, a melancolia e melodias bem acabadas. Sam Beam e seu Iron & Wine são assim, amados radicalmente. Espécies de franciscanos, doutores em ética que conquistaram discípulos por uma certa ingenuidade musical, típica da folk music, e um ranço podiscrê, reforçado pelo visual barbudo, que caracterizaram seus três primeiros discos. Agora, o cara quer mudar um pouco essa história com Kiss Each Other Clean(2011).

Antes, o Iron & Wine era Beam e toda sua tristeza infinita em dois discos, The Creek Drank The Cradle (2002) e Our Endless Numbered Days (2004), com essência folk que cativou os de corações generosos. Tanta poesia e dor foram arrefecidas um pouco no elogiadíssimo e melhor dos três, The Shepherd's Dog(2007), o meu preferido. Aqui, a alegria deu o ar da graça. Sim, havia réstias de sol no mundinho intimista da banda. Em Kiss Each Other Clean, Mr. Beam se aproxima do universo pop de quem, além de se sensibilizar com harmonias barrocas, gosta também de bater o pezinho, de sentir a pulsação dos instrumentos que inspiram a dança. Calma, o disco não foi feito para as pistas, mas tem uma levada até então estranha ao grupo, harmonias mais dançantes e que revelam o interesse de seu mentor de alcançar um público menos cult. E talvez por trás disso há o fato de que agora o barbudo trocou o cool Sub Pop por um selo, digamos assim, mais capitalista, a Warner.

Tudo bem que o novo disco traga, cerzidos com linha forte, os elementos mais caros ao folk, as melodias com ricas harmonias, percussão cuidadosa e os corinhos casados com a voz principal. Tem um pouco do velho Beam do início de carreira em baladas trabalhadas com esmero para reconfortar espíritos carentes. São os casos da linda “Godless Brother in Love”, canção curtida na simplicidade do arranjo, com belos piano e violão servindo deliciosamente de base para uma delicada melodia, e a quase country “Half Moon”, com sua letra invernal e um coro feminino fazendo contraponto preciso à voz bonita e segura de Sam Beam. Mas, esses dois bons momentos de Kiss Each Other Clean não representam o que o trabalho tem realmente de mais emblemático e marcante, além dos já citados coros, presentes na maior parte das composições: a farta instrumentação, realçada por arranjos refinados e elaboradíssimos, e uma explícita pendência para o pop.

O pop de Iron & Wine não é da mesma matéria daquele fabricado a granel por gente como Michael Jackson e Steve Wonder. Desses dois, aliás, herda um certo suingue negro, vindo do soul e do funk, que tem similitude em outro branquelo, o bacana Dave Mathews. É mais cabeça, mais intelectualizado, som cheio de filigranas que demonstram que o grupo é amante da sofisticação. O ataque de metais vibrante é, por exemplo, um dos grandes baratos de “Big Burned Hand”, com seus momentos jazzy, acentuado principalmente pelo sax sensual e improvisos instrumentais. O diálogo de metais e corda também faz a diferença na soberba “Your Fake Name Is Good Enough for Me”, com uma melodia, no início mais acelerada, que se revela inteira e sedutora quando a música diminui o ritmo e se desnuda para o ouvinte. São sete minutos de sonzeira nos quais fica evidenciado ainda o arranjo preciosista da composição e a voz de Bean que, dobrada, nos faz viajar aos tempos áureas do folk de Simon e Garfunkel. Quem lembra?

Ouça "Your Fake Name is Goof Enough for Me":

http://www.divshare.com/download/14498928-9dc

Nos dois exemplos do parágrafo anterior divisamos uma banda mais aberta para a possibilidade dos instrumentos. Flautas, percussão, metais, cordas, gaitas, eles estão em Iron & Wine muito mais vivos agora. E nas maos de uma trupe eficiente. Todos à disposição de uma farra elegante, da alma mais leve de uma galera e de um grande autor que encontraram sentido em satisfazer o lado mais leviano, desapegado, dos que gostam de música sem preconceito. Ouça “Tree by The River” e me diga depois se a concessão, mínima, tudo bem, à eletrônica é ou não um sinal de que os caras querem extrapolar fronteiras. Francamente desenvoltos, eles querem mais fãs. E isso não faz a música deles pior. Dez anos de carreira mudaram o modo do Iron & Wine encarar o mundo. E Kiss Each Other Clean, um disco acima da média e de capa deslumbrante, é bem a medida dessa pretensão.

Cotação: 3

Conte com a sorte, que o xerif web está mal humorado.Download aqui:

http://www.mediafire.com/?yw4435qab6cadco

Ouça sessão livre com “Walking from Home”: