quinta-feira, 31 de março de 2011

Pra sempre, Edward

Para ler ouvindo "Deus e o Diabo no Liquidificador", da banda Cérebro Eletrônico:



Tudo muito cinza, escuro. O ar sempre enevoado embaçando a minha vista, turvando os objetos e uma noite, longa noite, que parecia não ter fim, absurdamente ao meu redor. O mundo lá fora seria uma noite sem fim? Saudade de meu pai, de seu riso aberto, de meu pai com sua roupa branca no meio de sua casa negra. Seu castelo, nosso castelo de coisas enevoadas, vestido de teias e musgos, decorado de tubo de ensaios ensebados, esquecidos nos cantos. Homem engraçado meu pai. Ele me deu longas e afiadas tesouras ao invés de mãos. Não esqueço, ele me admoestava sempre: "seus dedos cortantes quando se mexem cortam". E me deixou a dor, o peito dilacerado quando, caído no chão, me fitou com olhos duros, secos, sem o reflexo de mim. Nunca mais meu rosto pálido nele, nos olhos dele. Depois disso meu pai nunca mais falou comigo, nunca mais ensinou palavras cheias de letras e sons. Depois disso, nunca mais ele. Mas, vejo meu pai todas as vezes que abro os olhos.

Meu nome é Edward. Pelo menos era assim que ele me chamava com uma voz mansa, como se ao chamar meu nome, grudasse à palavra algo a mais. Algo que não podia mensurar. Algo que me fazia bem. Um calor no peito na hora, como se meu nome dito por ele fosse um manto cálido a me cobrir, a me proteger do tempo sibilante que deixava tudo branco lá fora. A me proteger de algo que ele nunca ousou descrever pra mim. E esse algo era gigante e morava além do castelo negro que me encobria. Seria o mundo todo um grande castelo negro? Passava manhãs, tardes e noites usando minhas mãos para lembrar meu pai. Scissorhands. Eu sozinho no assoalho frio achando que tudo o mais não passava de mim sozinho. Meu presente era eu só. Meu futuro era eu só. Quem era eu nesse mundo sozinho? Até que um dia ouvi uma outra voz, diferente a de meu pai, fina e melodiosa. E eu nem imaginava, na minha sã inocência, que aquela voz mudaria toda a minha vida.

Corte. Segue o filme.

Aquela cena descrita lá atrás, antes do corte abrupto, é uma leitura livre de uma das cenas iniciais de um longa-metragem inesquecível. Tim Burton nunca mais faria algo parecido. Vinte anos depois, a fábula do jovem frankenstein amado e depois açoitado por uma sociedade cruel mantém seu frescor e magia. É assim com os clássicos. Eles vencem os dias, as décadas, incólumes às erosões e ferrugem que o tempo costuma provocar. Sem perder sua modernidade e vigor. O filme, que marcou a vida de muita gente nos anos 90, está sendo homenageado em uma bela exposição nos Estados Unidos. De 40 ilustradores, aqueles mesmos que, como eu, se encantaram com uma equilibrada mistura de poesia e horror. Edward Mãos de Tesoura(1990), a fita, é uma obra prima deliciosa, dessas que grudam na parede da memória.

Pra quem não viu, ta aí o trailer do filme:



Edward foi criado em laboratório por um cientista solitário, vivido por um fantástico Vincent Price em fim de carreira, humanizado e cativante. Surpreendente. Diferente de todos os monstros e personagens tenebrosos que marcaram sua cinegrafia. O cientista queria um filho para compartilhar sua solidão, alguém para conversar. Não conseguiu viver para ver a obra cumprir seu fim. Orfão e assustado, Edward é encontrado por uma vendedora da Avon, dessas que se multiplicaram pelo mundo afora, cheias de simpatia, em meados do século XX. A partir daqui entra em contato com um outro mundo, o dos seres humanos inconstantes e desconfiados, nosso louco mundo. Aí vem a perda da inocência junto com a paixão e a incompreensão. E aí vem o resto do filme, que prefiro deixar em aberto, para que você que está lendo essa resenha se interesse, talvez, em assistí-lo.

Garanto, do alto de minha mais inteira humildade: ver ou rever Edward Scissorhands é sempre um prazer. Tá lá o cineasta das esquisitices, Tim Burton, fazendo sua obra mais pop e intensa. Tá lá Johnny Deep mostrando todo o talento que o faria um dos atores mais cools e bacanas de holywood. Tá lá Winona Ryder linda, radiante, como o par romântico de Edward, despertando fantasias nos homens. E a palpável química dos dois envolvendo todos os 24 quadros por segundo do filme. Tem a cenografia dark, o humor negro, o figurino punk do personagem principal e o colorido contrastante de uma provinciana cidade norte-americana com todos seus habitantes provincianos e tão frivolamente norte-americanos. Enfim, todos os elementos que fizeram com que esse bacanéssimo filme ganhasse, 20 anos depois, a homenagem de talentosos ilustradores que colorem as paredes da Gallery Nucleus, na Califórnia. Eu não fui a Nucleus, mas pesquei na internet algumas das obras, que trato, com muito carinho, de reproduzir aqui. Para ver mais, vá em: http://scissorhands20th.blogspot.com/

Cotação: 5