quarta-feira, 29 de junho de 2011

Bendita herança

Todos somos frutos de heranças, quer sejam culturais, genéticas, filosóficas e políticas. Somos o que somos porque antes de nós houve já quem moldasse o mundo à imagem e semelhança do homem. Sorvemos assim as características de nossas famílias e as influências que, de Platão a Bill Gates, mudaram com o jeito da gente se relacionar com o planeta e com o próximo. Na música, há quem tente negar essa inexorável verdade. Filhos de artistas famosos fogem ou subestimam o sobrenome com medo da inevitável comparação ou do menosprezo, por parte da crítica, da personalidade em detrimento daquela de quem os pariu. Outros entregam-se ao que é óbvio e exploram, da maneira mais saudável possível, o DNA que corre em suas veias. É o caso de Anelis Assumpção, ou Anelis, como preferiu ser chamada artisticamente a bela negra, que lança o bom Sou Suspeita, Estou Sujeita, Não Sou Santa(2011). A filha do iconoclasta, ou seria íconeclasta?, Itamar Assumpção, estréia em disco com um trabalho plural e vigoroso que reforça o bom gosto e a grandeza dessa artista que, tudo indica, veio para ficar.

Anelis canta “Passando a Vez”:



O nome de Itamar Assumpção(1949-2003) é recorrente aqui neste blog. Sou fã declarado e rendido do cara. O genial paulista mexeu e estremeceu com as estruturas da comportada MPB nas décadas de 80 e 90 do século passado, criando um repertório único, de assinatura própria, no qual o batuque, a dissonância e estruturas melódicas surpreendentes marcaram o circuito undergound naquele período e fizeram história. Anelis debuta expondo e assumindo de forma cristalina sua herança bendita. Disse em entrevista que está, assim, pagando uma dívida. E que bela dívida! E essa é emocional e concreta. Sou Suspeita, Estou Sujeita, Não Sou Santa só existe fisicamente com a ajuda dói dinheiro arrecadado com a venda da Caixa Preta(2010), box com a reunião de todos os CDS do Negro Dito, incluindo dois inéditos que Anelis ajudou a dar forma. Comprei essa caixa em São Paulo e acabei dessa maneira, orgulhosamente, colaborando também com o lançamento da estréia dessa afinada cantora e compositora.

A herança sanguínea , os genes são assumidos na dedicatória do álbum – “pela ancestralidade que me fez continuar”, assume no encarte – e, de cara, na forte primeira música. “Mulher Segundo meu Pai” é batizado pelo próprio Itamar, em resgate vocal, que faz dueto psicografado pela filha. O beatbox característico do revolucionário músico, o som do baixo repetitivo e marcante traz de volta, com beleza e energia, a sonoridade do seu autor. Bela homenagem de Anelis, que demonstra nas entrelinhas, que aprendeu, com reverência, a lição de Itamar. É uma das grandes canções do disco que, em análise mais detalhada, não se reduz felizmente a essa generosa sombra. Anelis tem personalidade suficiente para dizer: olha, existem ecos de meu pai em mim, mas tenho cá minhas próprias idéias. Afinal, a paulistana já está na lida há muito tempo, tendo já participado como backing vocal em vários discos de gente graúda da MPB, sem falar é claro, como integrante da banda DonaZica e do trio Negresko Sis. Daí a grande expectativa gerada em torno dessa estréia.

Escute “Mulher segundo meu Pai”:



A maioria das músicas de Sou Suspeita, Sou Sujeita, Não Sou Santa são assinadas por Anelis. E para desenvolver sua poética e sonoridade, a artista contou com um arsenal de peso de amigos aquinhoados durante sua evolução musical. A ficha técnica lista gente talentosa como Céu, Thalma de Freitas(parceiras no Negresko Sis), a revelação Karina Buhr e mais Curumim, Lurdez da Luz, Alzira E., Flavia Maia e o ator Gero Camilo. Uma constelação, enfim, que ajuda a dar ainda mais consistência a essa álbum que peca apenas pelo excesso de canções. São 17, contando com algumas faixas-bônus presentes apenas em mídias alternativas. Nessa lista, a artista vai do samba ao reggae, passando pela bossa nova, mantendo, contudo, um refinamento nos arranjos que terminam por dar uma perceptível unidade ao disco. A sonoridade é moderna, “cool”, como diriam os norte-americanos. A elegância se faz presente no exercício instrumental, com metais e base percussiva usados com inteligência, como pode ser sentido, por exemplo, no estiloso dub “Bola com os Amigos”, outra das composições com ecos mais visíveis de Itamar.

De levada mais latina, bolerinho desregrado com letra lúdica que explora tema caro aos ecologistas de plantão, “Amor Sustentável” conquista fácil o ouvinte. “Eu quero ter uma vida biodegradável com meu amor/consumir conscientemente o gozo e a dor”, diz a letra oportunista. O samba alegre e malandro “Passando a vez” é outra forte candidata a cair no gosto popular. As características mais pop dessas duas composições, contudo, não é regra. Anelis baixa o tom, explorando sonoridades mais densas a exemplo da jazzy “Secret” e do reggae “Neverland”, com a participação de Céu, essa última uma das mais belas e perenes do CD. Karina Buhr e Flávia Maia fazem coro na bacana “Sonhando”, de autoria da primeira, pernambucana revelação de 2010 com “Eu Menti pra Você”. Afrobatuque envernizado por metais eloqüentes é música que fica na cabeça. Assim como as lindas baladas “Alta Madrugada” e “Quaresmeira”, ode à delicadeza na qual Anelis divide os vocais com Alzira E., irmã de Tetê Espíndola. Sou Suspeita, Sou Sujeita, Não Sou Santa corresponde, enfim, às expectativas criadas. Não chega a surpreender, por tudo o que a paulistana já demonstrou até agora. Um trabalho bem resolvido, redondo, que traduz a alma forte e talentosa e o espírito de Anelis. Um disco com substância, desses que nossas mãos estão sempre procurando, mesmo imperceptivelmente, para colocar no toca-cd. Deixa tocar.

Cotação: 4

Não seja santo, entre na lista dos suspeitos:

http://www.mediafire.com/?ic6ipud6a3zaod7

domingo, 26 de junho de 2011

Tapa na orelha

“Fique atento quando uma pessoa lhe oferece o caminho mais curto”. Papo reto, o aviso objetivo é dirigido para aqueles que moram nas regiões periféricas das grandes cidades e encontram nas drogas e trambiques um jeito fácil de se ganhar dinheiro, correndo todos os riscos que isso acarreta. Prisão, morte, dor, não merecendo, o pobre coitado, na maioria das vezes, nem sequer uma nota de roda pé nos jornais populares, aqueles que vivem de tragédias e violência. A máxima não vale, contudo, para a música de quem a deixou registrada em disco logo nos segundos iniciais da primeira canção. Nó na Orelha(2011) é o caminho mais curto para se chegar à arte robusta de Kleber Gomes, ex Criolo Doido, hoje só Criolo. Esse paulistano, muito conhecido nas Rinhas de MCs da capital de São Paulo, entrega ao público uma estréia solo de peso, com impacto parecido, ouso dizer, do lançamento de Enxugando Gelo (2003), incensado, merecidamente, trabalho do rapper B Negão. Os dois têm a mesma força e genialidade de quem une mensagem política e som brasileiro de qualidade com raro talento.

Assista a videografite de “Não existe amor em SP”, criado por Daniel Ganjamam:



Criolo é da estirpe dos guerreiros que usam a música como instrumento de denúncia, sem que, com isso, caiam na doutrinação ou no discurso chato. E o que é melhor com todo esmero na construção de melodias e arranjos bem acabados. Ou seja, o cara não está aí para brincadeiras e nem, justiça fosse feita, para ficar restrito às radiolas dos guetos. Seu som plural, pela proposta sincera e consistência, bem que poderia ganhar as rádios e os players da galera brasileira. O artista é, há duas décadas, parceiro e ativista do rap, gênero que tem um público cativo e fiel. Seu trabalho de estréia, com produção dos cultuados Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral, vai, contudo, muito além. Invade com autoridade e brilho outras praias melódicas, sempre com os pés fincados na black music. Sonoridades d’Angola, de Fela Kuti, samba, batuque, suingue com influência e alma negras. Navio negreiro que carrega também as mazelas que vitima principalmente aqueles cuja cor provoca preconceito e tratamento diferenciado por uma parcela medieval e burra da sociedade.

E é assim, com música de pegada irresistível e discurso afiado, que Criolo conquista o surpreso ouvinte que, como eu, não conhecia a poesia do sujeito homem. Em “Bogotá”, um afrobeat dançante de metaleira e percussão espertas, ele se inspira no movimentado universo dos muambeiros. “Vamos embora para Bogotá, muambar, muambê”, sugere a letra, com direito, na sequência da frase, a citação, com liberdade fonética, de Manuel Bandeira, “Vai ser melhor do que Pasargada, agradar até o rei”. A marcada “Subirodoistiozin” é outra canção meio jazzy, com letra cheia de gírias e expressões típicas de comunidades mais pobres, que critica a crueldade de um sistema no qual os viciados endinheirados são uma explícita ameaça: “Que contradição, quem tem tudo de bom é quem fornece o mal para a favela morrer”, diz a letra ácida. Existe quase sempre muita acidez no que escreve o cara, até mesmo naquelas composições com espírito mais light e romântico, como na linda “Não Existe Amor em SP”. Essa, uma ode à São Paulo urbanóide, dos “labirintos místicos, onde os grafites gritam”, mas que também tem suas armadilhas: “Postal tão doce, cuidado com o doce, São Paulo é um buquê”.

E a viagem musical de Criolo, depois de visitar o trip hop de “Não Existe Amor em SP”, passa por muitas encruzilhadas. Alcança o batuque africano na fantástica e discursiva “Mariô”, com refrão em ioruba e muitas referências na letra a ídolos como Chico Buarque e Fela Kuti. Repassa o dever de casa em dois rap inteligentes, “Grajauex”, poema concreto que brinca com as rimas possíveis com a sílaba “ex”: “os irmãos que tão com fome, desce três marmitex, sabão de coco não é bombom com protex(...)zona sul é um universo, e os vagabundos é belezex”, e na seca “Sucrilho”, cheia de ranço político e afirmação de identidade: “Calçada pra favela, avenida pra carro/ Céu pra avião e pro morro descaso”. Sem se prender a gêneros, Criolo vai ainda de samba na bacanéssima “Linha de Frente”, só no miudinho para despedaçar corações. Sambinha leve e cheio de graça que une percussão e metais de forma deliciosa. E desafia limites, beirando o brega na lúdica e abolerada “Freguês da Meia Noite”, a história de um homem apaixonado por uma confeiteira que sempre lhe oferece doces “furta cor de prazer”.

Ouça "Sucrilhos":



Criolo é um dos belos e grandes achados de 2011. De uma maturidade típica de quem tem um lastro musical de peso, o paulistano oferece um cardápio musical irresistível e bem temperado. Mesmo sem ter uma voz que marque, o artista compensa essa lacuna com canções de raro apelo emocional e bela engenharia instrumental. Nó na Orelha é nosso Brasil periférico com tintas universais, desenhado por um músico antenado com suas raízes e sensível com nossa mais crua realidade. Traz a herança de um povo que acorda para a cidadania. Tapa na orelha, nó na garganta. Esse cabra Criolo tem o que dizer e sabe como dizer. “Cada um sabe o preço e do papel que tem, de onde vem”, canta em “Bogotá”. Seu debut é obra incisiva, que já nasce clássica em sua diversidade sem fronteiras, sem preconceito. Desde já, ainda impressionado com o que ouvi, acredito que esse é um dos melhores discos nacionais do ano. Recomendo.

Cotação: 5

Se ligue no samba do Criolo doido:

http://hotfile.com/dl/115890191/5fb3ca1/Criolo_No_Na_Orelha.rar.html

terça-feira, 21 de junho de 2011

Contra o mau humor

Existe um preconceito em meio à crítica musical que muitas vezes empana a razão e entorta o coração. Dessas bobagens típicas de resenhistas casmurros que sobrevivem mal aos seus preciosismos e ao vazio de indulgência. Gente que cobra em demasia e ensaia textos ácidos para não se enquadrar no gosto comum, principalmente quando se trata de músicos que fazem sucesso. Observei isso com relação ao recente álbum do Strokes, o bacana e corajoso Angles. Do novo percebi esse ranço em resenhas venenosas e injustas sobre o último trabalho de um outro grupo que já alcançou o estrelato, o Arctic Monkeys. Muitos tentaram implodir Suck it and See(2011) por aquilo que ele tem de mais curtível, a pegada pop e quase juvenil, característica aliás que, me desculpem os incisivos e impiedosos críticos de plantão, é um dos combustíveis que tornaram o bom rock and roll um gênero tão carregado de honestidade. E é essa imperativa impulsividade que faz desse obra vilipendiada dos ingleses uma das mais interessantes que já ouvi nesse generoso ano de 2011.

Assista vídeo de "Brick by Brick":



O Arctic Monkeys voltou com aquela alegria desregrada presente nos seus dois primeiros álbuns, o efervescente Whatever People Say I Am, That’s What I’m Not(2006) que encarei, nas primeiras audições, com alguma desconfiança, e, para mim, a obra-prima, até agora, Favourite Worst Nightmare(2007). Com Humbug(2009), o grupo capitaneado por Alex Turner tentou um amadurecimento tipo microondas, rápido e forçado, perdendo aquela espontaneidade que havia arrebatado tantos fãs. Suck it and See parece ser uma tentativa de voltar às pazes com seu fiel público. E se essa era a intenção, os caras estão cumprindo com honras a missão. Orientados pelo produtor James Ford, o mesmo de Favourite..., Turner(vocal), Jamie Cook (guitarra), Nick O'Malley (baixo) e Matt Helders (bateria) escolheram um playlist de fácil assimilação, com muitas favas contadas, achados pops que irão movimentar pistas e girar indefinidamente nos tocadores de música da molecada e também, porque não, daqueles mais velhos que gostam da eletricidade do rock despojado. Um deles é a garageira e uma das melhores do trabalho, “Brick by Brick” com seu riff pesado de guitarra e o coro grave, que resgata o espírito festivo do Kinks.

Na mesma sintonia de “Brick by Brick”, primeira música de trabalho do CD, o repertório traz pérolas da mesma linhagem abrasiva impressa nos melhores álbuns do grupo, a exemplo de “Don’t Sit Down ‘Cause I’ve Moved Your Chair”, com a guitarra rascante de Cook em perfeita harmonia com o baixo de O’Malley. “All My Own Stunts” repete os riffs de cordas que tanto marcou a carreira dos britânicos. Elíptica, essa canção prende o ouvinte com sua boa melodia sinuosa e o vocal esperto de Alex Turner. Mas, a galera faria ainda melhor na provocante “Library Pictures”, que conta com as alucinadas viagens de Helders e a tresloucada guitarra de Jamie Cook numa festa, ora espertamente compassada ora pura pauleira, para nossos agradecidos ouvidos. Rockão de primeira perpetrado em poucos mais de dois minutos que já valeriam o disco. Sem dúvida, um dos melhores petardos do ano e revelador ainda de um Arctic Monkeys palpável, íntegro, cheio de boas idéias e inspiração.

Ouça “Library Pictures”:



Mesmo quando não solta os diabos, o grupo é capaz de cometer composições precisas. Prova inconteste disso é a saborosa música de abertura, “She’s Thunderstorms”, com sua guitarra hipnótica e melodia pra lá de marcantes, carregada de uma nostalgia romântica que remete aos grudentos clássicos do rock dos anos 50 do século passado. Envolventes também são as boas “Black Treacle” e “The Hellcat Spangled Shalalala”, baladas de uma simplicidade e ternura que chega a ser tocante. Com Suck it and See, o Arctic Monkeys foi taxado, por muitos, de burocrático por fazer um rock sem grandes pretensões e que casa com aquilo que os fãs de carteirinha esperavam da banda. Nunca esperei nenhuma grande ousadia desses rapazes, até porque para eles música parece ser unicamente sinônimo de diversão. E se ser burocrático é fazer, inteligentemente, como acredito nesse caso, música para a massa, então viva esses operários que nos dão prazer. Pelo seu descompromisso com a crítica chata e tacanha, esse álbum já é um dos meus preferidos de 2011. Dá-lhe Arctic Monkeys.

Abrindo aspas. Só a guisa de curiosidade, para o conhecimento de meus caros e reduzidíssimos leitores que ainda não sabem do fato: Suck it and See, com sua capa simplória e minimalista, mas título declaradamente imoral, algo numa tradução livre como “Chupe-o e veja”, foi, por isso mesmo, retirado absurdamente das prateleiras das lojas de disco norte-americanas. Fico pensando se os filmes blockbusters tão sortidos de palavrões produzidos naquele país fossem, por isso mesmo, proibidos de passar nas telas de cinema ou de TV de seu próprio território ou nações alheias, como estaria a milionária indústria holywoodiana... Para esse falso moralismo só poderia dedicar duas palavrinhas roubadas do vocabulário popular dos nossos irmãos gringos acima da linha do equador: fuck you. Ou em bom português mesmo: foda-se. Fechando aspas.

Cotação: 5

Antene-se:

http://www.fileserve.com/file/7ENv8f8/www.NewAlbumReleases.net_Arctic%20Monkeys%20-%20Suck%20It%20And%20See%20%282011%29.rar

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Cão sem dono

Para ler ouvindo "Freguês da Meia Noite", de Criolo:



O aguaceiro veio sem piedade. Nas primeiras noites de chuvas torrenciais, o rio que passa do lado da casa onde morava começou a mostrar as garras, vindo lenta e insidiosamente em direção a madeira do batente. Aquilo não me incomodou muito nos dias anteriores a tragédia, porque minha memória de cachorro já registrara situações parecidas em outros tempos raivosos como aquele. E parecia também não tirar do sério meus amigos pulguentos da vizinhança e nem, ainda, assustar muito aqueles pobres diabos que cuidavam de nós. Nunca entendi porque meu dono insistia em morar numa casa de madeira a beira de um rio que sempre alagava com chuvaradas que pareciam sem fim. Não sei que tipo de carinho esses humanos tem por suas construções mal-ajambradas e fedorentas, cortiços que sempre tremiam diante de invernos encarniçados. Eu tentava relevar essa franca desgraça, afinal em troca de um pedaço de osso e um pouco de resto de arroz, não arredava por nada desse mundo o pé do alpendre cheio de goteiras que me protegia custosamente dos pingos d’água. Minha pouca, mas aguerrida dignidade, se apegava aquele conforto mesquinho. Não podia negar a raça, vira-lata que era.

Assista a vídeo com o vira-lata na enchente:



Não imaginava que esse ano seria diferente. Muito diferente. Nos outros invernos assistia, quase sempre sonolentamente, o burburinho dos humanos que se inquietavam diante de tamanha enxurrada. Discussões afiadas, a fêmea deles esbravejando na sala, com espuma na boca, como se fosse uma cachorra louca, apontando para o céu, riscando o ar nervosamente com seu dedo em riste. E o macho dela, meu outro dono, normalmente com olhos mareados, injetados de uma cor vermelho sangue, talvez por causa daquele líquido brilhante dentro de um vidro ainda mais brilhante que pendia invariavelmente de sua mão até rolar pelo chão, não ligava muito para o que a fêmea dizia. Mas, depois calavam e a chuva diminuía seu violento ataque fazendo adormecer todas as casas que nos rodeavam. E o chuvisco, como música de ninar, me fazia sonhar com noites de lua cheia. O que aconteceria nesse ano acinzentado me pegou de surpresa, me deixou assim num desamparo e amargor que arrepiou todos os meus parcos pelos, me sentindo terrivelmente como um cão sem dono.

Lá pela quarta noite depois de toda aquela água que caía esmurrando as telhas de amianto das casas, percebi que a história de memórias antigas não se repetiria. No tardar da madrugada, já com a alma intranqüila e a água pelo meio das raquíticas canelas, ouvi os passos acelerados de meus donos que corriam de um lado para o outro. Lati querendo atenção e afago, talvez uma explicação qualquer. Nenhum deles se dignou a olhar para mim. A voz dos humanos confundia-se com a chuva pesada, ribombando em meus ouvidos sensíveis de vira-lata. Tentei repetidos latidos e até ensaiei alguns uivos, exercício vocais aos quais pessoalmente nunca tive muito talento, mas em vão. Assisti, preso pelo pescoço à minha velha conhecida e encardida corda de todo dia, a evolução gradativa do que se tornaria, em rápidos e desesperados minutos, o mais absoluto e cruel esquecimento.

O desfile diante de meus olhos assustados foi ligeiro e caótico, obedecendo, no meu fraco raciocínio, à ordem de importância que os humanos davam a seus objetos, primeiro saiu porta afora aquele aparelho luminoso que repetia as imagens dos humanos, depois o objeto arredondado de cores esquisitas em que eles sentavam, e o outro de aspecto purulento em que dormiam e faziam barulhos altos. E eu ali, molhado até as entranhas, esperando a minha aguardada vez de ser carregado em braços quentinhos e acolhedores. Nada. O desfile continuou. Aquilo com que eles cobriam os corpos veio na seqüência, as tábuas redondas nas quais comiam, depois, e vieram um tanto de objetos que eu desconhecia e, por fim, meus próprios donos subiram em pequenos barcos e foram desaparecendo entre vãos que antes eram ruas, sem nem olhar para trás, sem nem olhar pra mim, já então completamente enregelado. Arregimentei forças e tentei ainda um último e desesperado latido, abafado pela impiedosa chuva. Não ouvi qualquer resposta. Era só eu agora, lutando contra a morte.

A morte se aproximou de mim meio desgovernada como os pedaços de paus e plásticos que a enxurrada trazia nas águas do rio agigantado. Ainda sentia o chão nas pontas de minhas patas úmidas. Restava-me morder, roer aquela corda fétida que pesava em meu pescoço magro de vira-lata. Na primeira tentativa, a maldita não quis ceder à força de meus dentes amarelos. Era preciso tentar mais uma vez. Senti que a corda não folgava, por uns instantes pensei que ela quisesse me apertar, se amarrar mais ainda em mim, como um desmerecido castigo, como uma mão invisível que me empurrasse para baixo, para as profundezas do rio. Lati raivoso e numa terceira e mais vigorosa tentativa, percebi que os fios do cordão se partiam aos poucos, caprichosamente. Anos de exercício roendo pacientemente ossos valeram o esforço. Forcei o rompimento com uma mexida brusca de cabeça, para um lado e para o outro e mais uma vez, outra vez, até que a corda partiu e ficou boiando presa à coluna de madeira da casa. Estava salvo. Agora sem pressa, com uma balsâmica sensação de vitória. Num lento e desolado nado de cachorrinho fui até a margem mais próxima, onde encontrei aliviado a terra firme. Debaixo de uma latada, cansado da guerra, cão sem dono, descansei a cabeça no piso de cimento e sonhei com um dia de sol.

P.S.: Nos dias 2, 3, 4 e 5 de junho de 2011 uma chuva intensa e intermitente caiu sobre o estado de Roraima. A pior dos últimos trinta anos. Virou notícia em rede nacional. Em Boa vista, o nível do Rio Branco subiu mais de 10 metros, alagando ruas e casas de madeira das comunidades ribeirinhas, famílias pobres que só abandonaram seus lares depois que a água chegou na altura do joelho. Os cachorros vira-latas, às dezenas, foram abandonados pelos seus donos. Muitos deles ficaram à beira do rio, perdidos, olhando de longe suas casas alagadas. Um pequeno detalhe dramático numa novela real que tocou a todos nós em Roraima.

P.S 2.: A visão mostrada na narração em primeira pessoa aqui é exclusiva do personagem.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Depois da tempestade

Entre tantos erros que cometi na vida, um deixou especialmente minha alma esgotada, na penúria, como aqueles biafras de expressão tocante na parte vergonhosa da África que morre de fome. Daqueles erros crassos, clássicos que servem para moldar todo um caminho dali pra diante. É como conviver com o vazio, num diálogo claudicante com a dor. Errar leva a uma lição que deveria ser sempre inesquecível para aquele que protagonizou o tropeço. Uma espécie de jab retificador de nossa ingenuidade. “Um homem roubado nunca se engana”, diria o filósofo Chico Science, mestre de todas as horas. Tá certo, ele. Penso nisso quando me deparo novamente com uma banda que gostei de cara ao ouvir o surpreendente álbum de estréia. Guillemots é o nome. Fizeram bonito no começo e depois vieram com um segundo disco estranhamente incorreto, esquálido, risível. Erraram feio. Mas eis que souberam aprender com o deslize e agora lançam esse que é, para mim, um dos trabalhos mais encantadores do ano.

Assista ao vídeo de “The Basket”:



Aquele primeiro disco, o surpreendente, é Through the Windowpane(2006), de robusto conteúdo e melodia cortante. Um desses para figurar, de tão poético em seu fazer, na cabeceira de gente de coração mole como eu. Um disco assim como um dia de sol em que tudo dá certo. Red(2008), o segundo, foi o exercício da decepção, venal e frágil como as promessas de um político que nem a próprio mãe acredita mais. Tiro no pé. O terceiro, o redentor, chama-se Walk the River(2011), fluido assim feito avassaladora paixão de adolescente. Febril desse jeito mesmo, enquanto criação generosa entregue ao nosso deleite. O combo multicultural que reúne um inglês, o vocalista Fyfe Dangerfield, um escocês, o baterista Greig Stewart, o brasileiro e guitarrista Lord Magrão e a baixista canadense Aristazabal Hawkes, os Guillemots, acertou a mão, produzindo doze canções inspiradas num álbum equilibrado e pronto para arrebanhar, com sua envolvente entranha, mais uma nova leva de fãs.

E o que vem das estranhas de Walk the River? Vem música madura, feita com esmero por artífices que podem ser comparados com aqueles artesãos de peças únicas, rococós, talhadas contra a vontade desses tempos ligeiros, afobados. Com paciência é possível degustar aquilo que o primeiro CD do grupo tinha de melhor, melodias bem acabadas e costuradas com arranjos super espertos. Quem ouviu a obra de estréia do Guillemots, guarda com carinho na memória a tentativa dos músicos de construir composições quase épicas, grandiosas. Essa marca registrada volta à tona em canções como “Yesterday is Dead”, com seus oito minutos orquestrais, com cordas e coros que crescem aos poucos até o final apoteótico e cheio de texturas. Repare nos últimos segundos da música, onde, do nada, entra um enigmático coro infantil. Essas camadas sonoras, postas uma sobre as outras com arte e engenho, voltam a se repetir em “Sometimes I Remember Wrong”, com uma longa e climática introdução instrumental que bem dispensaria a cantoria triste de Dangerfield.

Gosto principalmente dos momentos mais pops do disco, aqueles em que os Guillemots soam mais diretos, ainda que, mesmos nesses casos, não dispensem uma certa grandiloqüência mal disfarçada nos arranjos. Talvez pensem que nos engana com esse truque de parecerem simplezinhos. E é assim que eles, de alma lavada e lavando a nossa, arrebatam o ouvinte num dos inícios de álbum mais bacanas com que me deparei este ano. As três primeiras músicas são de uma graça e inspiração que emocionam. A voz segura e limpa de Fyfe Dangerfield leva você, na música título “Walk the River”, a mergulhar num rio de sensações prazeirosas. Grande composição levada com paixão e zelo pelo vocalista. Mas, o melhor viria a seguir com a ótima “Vermillion”, uma das minhas preferidas, que começa acústica, emotiva e segue arredondando sua beleza com a entrada, aos poucos, de mais instrumentos até cair num solo vertiginoso de guitarra. Dez de luxo. Assim como a mais roqueira “Ice Room”, daquelas de rachar assoalhos com suas cordas nervosas e corinho que lembra um bom U2.

Ouça a excepcional “Dancing in the Devil’s Shoes”:



Eles são pop e acessíveis também em outras pequenas pérolas, como a deliciosa balada “I Don’t Feel Amazing Now” e a que já nasce clássica “I Must be a lover”, com um dos melhores refrões, entre os muitos criados com inspiração para este álbum. Esta última canção, pode até ser heresia minha, admito, assim como “Slow Train”, remetem ao rock bem produzido e popular cometido por um cara cheio de atitude, autor de pelo menos dois álbuns marcantes dos anos 90 do século passado, o britânico George Michael. Quem tem medo dele? E para terminar essa resenha tão cheia de adjetivos e elogios descarados, que me perdoem os que a lêem agora, chamo atenção para uma canção lenta, a atmosférica “Dancing in the Devil’s Shoes”, de rara beleza e na qual me deixo sempre navegar. Ainda quero compreender esse sentimento e esse fogo que ela acende em mim. O tempo há de abrir, espero, clareiras para esse entendimento. Talvez você até desconfie de mim nesse momento atravessado, afinal esse gostar disparatado tende a empanar a razão, que sempre se mete à cartesiana. Mas, do alto desse meu coração aberto em demasia, arrisco a dizer, e sem medo de errar, que “Walk the River” é obra pra ficar, um grande álbum da mais completa redenção dos Guillemots.

Cotação: 5

Escolha:

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