segunda-feira, 29 de março de 2010

Mantendo a linha

Existe um gênero musical que marcou os anos 90 do século passado ao mergulhar consubstancialmente tristeza em um mar de eletrônica e estranheza. Sonoridade depressiva contraposta a grooves e batidas que produziam doce contraste e contundência. A proposta partiu do coletivo Massive Attack, um grupo da cidade inglesa de Bristol, e foi batizada na época de trip hop. Desde o primeiro álbum, Blue Line(1991), o grupo lançou apenas cinco trabalhos, todos cercados de grande expectativa. O último acaba de sair do forno, Heligoland(2010), um trabalho de fôlego que reforça a fidelidade do duo Robert “3D” Del Naja e Grant “Daddy G” Marshall, sobreviventes da formação original, a música viajandona que ajudaram a criar.

Não existem grandes novidades ou traços evolutivos em Heligoland, que chegou sete anos depois do bom 100th Window (2003). E isso, que fique bem claro, não é depreciativo. Quem conhece o Massive Attack sabe que a maçaroca climática que produzem é por si um belo presente para ouvintes de bom gosto. É uma fórmula complexa que, se bem repetida, já vale o dinheiro gasto no CD original. No último disco do grupo, os arranjos super bem elaborados, o alto nível da produção e a inspiração afiada de Del Naja e Daddy G Marshall, que se cercaram de convidados de estirpe nobre, garantem uma boa viagem aos fãs e a sobrevida de um gênero musical cultuado no passado, mas que veio perdendo espaço nesta década.

E a viagem começa muito bem com "Pray of Rain" que resgata toda a força do trip hop, da aspereza soturna da atmosfera que a melodia cria ao uso estudado dos barulhinhos eletrônicos. Acompanhado de uma bateria tribal e um baixo bem marcado, o convidado Tunde Adebimpe, da ótima banda Tv on the Radio, empresta sua voz para interpretar uma melodia que começa melancólica e ganha pinceladas mais alegres lá na frente, num delicado crescendo. É Massive Attack como antigamente. Mesmo espírito de “Paradise Circus”, marcada por palminhas, uma programação eletrônica minimalista e a voz suave, quase infantil de Hope Sandoval. Da mesma lavra da bela “Babel”, com uma Martina Topley-Bird, pioneira do trip hop, esvaindo-se em sensualidade na batida de um drum’n’bass viajandão em composição de arrepiar.

O Massive Attack explora com sobras o terreno do trip hop de raiz em quase todo o álbum. E belisca referências do groove negrão, da black music, que só ajudam a tornar as músicas ainda mais sedutoras e chapantes. Caso de “Splitting the Atom”, uma das mais legais desse Heligoland, com o jamaicano Horace Andy mesclando sua voz a batidas eletrônicas hipnotizantes em uma levada meio soul. Del Naja e Daddy G Marshall buscam ainda inspiração em outras praias, como na interessante “Girl I Love You”, na qual é possível perceber ecos de música indiana. No mais, encaram suas viagens de cara lavada e até com alguma leveza, como na bem arranjada “Psiche”, com um início arrebatador e a ótima Martina Topley-Bird mostrando mais uma vez sua afinada arte de encantar.

Heligoland só não é cem por cento porque há algumas viagens na maionese. A maior delas é a experimental “Flat of the Blady”, que destoa de todo o resto do álbum com seu opressor estranhamento e um Guy Garvey, da bacanuda banda Elbow, cantando desleixadamente e tornando a canção ainda mais incômoda aos ouvidos. Del Naja assume os vocais na tensa e arrastadíssima “Rush Minute”, outra decepção, que se perde na arrogância dark de sua construção. E por pouco Damon Albarn, do Blur e Gorillaz, fora do tom, não estraga a inspirada e contundente “Saturday Come Slow”. Nada disso, porém, tira o brilho dessa incursão musical profundeza adentro desses ingleses bons de bola. Valeu a espera de sete anos: Heligoland está a altura de seus criadores e a gente tem mais é que agradecer.

Cotação: 4

Entre na roda:

http://www.megaupload.com/?d=R4U1E1LP

Escute "Pray for Rain":



Vale a pena ouvir também "Psyche":



Assista a filme inspirado em "Saturday Come Slow":

quarta-feira, 3 de março de 2010

Na calma das horas

Tem hora que a gente se sente assim com uma volumosa preguiça, uma vontade irregovável de se afundar em uma poltrona, a ela querendo se incorporar, como parte inseparável de sua malha de tecido. Assim mesmo, quieto, mudo, sem querer mexer uma palha. Como se algo, contra a nossa vontade, nos fizesse viver em câmera lenta, feito reprise de um gol, deixando que tudo o mais viesse solenemente se unir aquele inquebrantável reino de zenitude. O último do Beach House, Teen Dream(Subpop, 2010) me deixou desse jeito sem vergonha, meio aluado, confiscado pela serenidade de um som de baixa rotação, low fi clássico, amparado por melodias bem construídas e bom instrumental.

De Baltimore, nos EUA, a dupla formada por Alex Scally(guitarra) e Victoria Legrand(vocal e teclado) vive seus dias de glória e bajulação no universo paralelo onde mora a volúvel e radical tribo dos indies. O terceiro disco, lançado em janeiro, caiu de cheio também no gosto da crítica especializada, que dispensou quilométricos elogios ao dream pop do casal. E Teen Dream é sem dúvida o melhor e mais bem cuidado álbum do duo. É uma evolução natural, concreta e, claro, muito bem vinda, dos trabalhos anteriores, Beach House(2006) e o lindo Devotion, um dos discos marcantes de 2008 e que se tornou a chave mágica que abriu um mundo de possibilidades e conquistas para aqueles dois norte-americanos.

Apadrinhados pelo selo Subpop, cujos executivos costumam fazer sensíveis escolhas, e maquinados pela produção inteligente de Chris Coady, o Beach House aninhou-se em uma igreja para gravar seu som em um território perdido entre o onírico e o ensolarado. Alex e Victoria produziram dessa vez um som mais encorpado, sem perder o encanto e a ternura praticados com devoção nos trabalhos anteriores. Os fãs não hão de reclamar. Afinal, estão lá no mesmo lugar, ainda que mais comedidos, o teclado monolítico, meio oitentista da vocalista da dupla, presente com tanta intensidade em pequenas pérolas como “Walk in the Park”, decididamente uma das mais legais do álbum, e a cool “Lover of Mine”, e a guitarra lúbrica da cara metade, provocativa na correta “Silver Soul” e slide na medida certa na mediana “Norway”.

O que faz de Teen Dream bacana é a leveza carregada de seriedade que os dois impõem ao seu indie melódico. São melodias com letras românticas e imantadas de um poder quase mântrico. E aqui não se leia pesar ou angústia ou estupefaciência. Talvez torpor, mas um efeito prazeroso provocado pelas boas canções. É possível visualizar um padrão nesse trabalho que leva a essa sensação. A percussão e teclados são bases enxutas, muitas vezes repetitivas e lineares, para a guitarra mais intransigente de Alex Scally e a voz equilibrada de Victoria Legrand, trabalhada entre momentos explícitos de suavidade e outros de certo desespero. Tudo devidamente equacionado por arranjos que incorporam instrumentos e pesos antes estranhos ao trabalho do duo.

É dessa forma que o ouvinte é pego pela cabeça na terna “Used to Be”, na qual a melodia marcante é acompanhada de início por um pianinho confortável que volta num breque esperto depois de um refrão onde o crescendo do instrumental hipnotiza. Ou ainda em “Better Times”, que explora mudanças delicadas de andamento com uma guitarra que se mostra sensual, na maior parte da música, e viril, em raro instante. Em todas, contudo, prevalece uma ternura, aquela suavidade, muito bem traduzida na boa “Take Care”, que fecha bem o álbum, mantendo toda a aura low fi. Um clima que me fez ficar assim no remanso de minha poltrona deixando se levar, como tábua na maré, pela suavidade da proposta musical do Beach House. Um disco para ouvir na calma das horas.

Cotação: 4

No clima da Casa de Praia:

http://www.4shared.com/file/161699603/9843558e/TDBH-musicandcigarette-rafael7.html

Escute “Better Times”:



E também “Love of Mine”:



Veja o vídeo de “Norway”: