domingo, 26 de setembro de 2010

Quero dizer valeu Luísa

Tem meninas do Brasil que nasceram para tocar a alma da gente. Tão ligadas a tudo que diz respeito ao coração que basta abrir a boca para o universo acender. Algumas nascem prontas e por isso surpreendem quando resolvem debutar pros nossos ouvidos. É o caso de Luísa Maita. Uma estréia tipo crônica de um encanto anunciado. A paulistinha já vinha dando lampejos de seu imenso potencial no circuito alternativo. Dividindo o talento ao lado do também surpreendente músico Rodrigo Campos, autor de um dos mais belos discos de MPB de 2009, São Mateus não é um lugar assim tão longe. Agora, a cantora de voz suave, compositora acima da média, resolveu se mostrar por inteira. A moça fez de Lero-lero uma pequena e graciosa pepita, lapidada por uma carreira curtida pelas boas companhias, bom gosto musical e força autoral.

E logo de início, com a bela “Lero-lero”, Luísa já mostra a que veio. Música incandescente puxada pro samba a falar de amizades telepáticas, de gente que se entende sem precisar palavras. Letra curta, minimalista, com uma cama percussiva que incendeia os sentidos. E continua seu discurso com a também hipnótica “Alento”, uma das melhores do disco. A letra guerreira dá o recado do que pode ser a moça: “É, eu tou na vida é pra virar/ que a felicidade vem/ eu tou sonhando mais além/ Eu não fui feita pra fingir. Eu tou ligada é no amor, que se tem pra viver”. Ligada no amor, é música boa, sem fingimento. E moderna com suaves toques de eletrônica e muita percussão alinhavadas organicamente. Do mesmo modo, "Aí, vem ele" é trilha urbana para horas de reflexão, chá de camomila pro coração. Tudo embalado ainda por músicos de primeira linha. A artista conta com os produtores Paulo Lepetit e Rodrigo Campos, e Kuki Storlarski e Sérgio Reze (bateria), Théo da Cuíca e Jorge Neguinho (cuíca), Siba (rabeca), Fabio Tagliaferri (viola) e Swami Jr (violão).

Aí vem sequências de outras pequenas maravilhas. “Desencabulada” é som de morro, samba cadenciado. Sobre Isabel, “a morena de cabelo cacheado que dançou desesperada num baile funk molhando de suor os parceiros muitos.” Deliciosa melodia. Com se fossem uma música só, a desencabulada engata em “Fulaninha”, uma embolada contemporânea com arranjo econômico e corinho feminino feito sob medida para o feitiço proposto por Luísa. Destilando urbanidade, as poderosas “Maria e Moleque”, em parceria com Rodrigo Campos, e “Anunciou”, com sua batida pulsante só reforçam o sentimento de que a moça veio para ficar. Luísa Maita, autora de quase todas as letras do disco, é uma das boas surpresas do ano e Lero-lero uma estréia antológica. Lembra a ótima cantora Céu quando lançou sem primeiro disco. As duas têm em comum uma natural gana de reinventar a MPB. E nesse quesito Luísa já se colocou na linha de frente.

Cotação: 5

Sem mais lero-lero, baixe:

http://rs939.rapidshare.com/files/412022216/UQT2010_LuisaMaita-Lero-Lero.rar


Ouça a linda “Lero-lero”:


Desencabule-se:



Veja o clip de Alento:

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Parque de diversão

É sem dúvida uma das peças mais pops e desencanada do ano. O álbum de estréia da novaiorquina The Drums, que leva o nome do grupo, é como um delicioso parque de diversão à moda antiga. Esses meninos fazem música por esporte. Ouvi o disco no carro do meu chapa Wagner, deslizando pelas avenidas longitudinais de Brasília. Trilha sonora eficiente. O velho parceiro, o meu melhor guru musical, atento a todas as novidades, sabe das coisas. A batidinha nostálgica do grupo ora soa como um The Smiths redivivo e descarado, como na ótima “Best Friend”, ora tem a pulsação típica da juventude, a exemplo das excelentes “Skippin Town” e “Forever and ever Amen”. A banda carrega, pela idade mesmo dos integrantes, um despojamento natural que tem tudo para agrada até os mais sisudos e renitentes críticos do novo rock.

The Drums é carne fresca no pedaço. Filé mignon pronto para o consumo. Jonathan Pierce, o vocalista, tem uma voz bêbada, largada, pendendo para um ensaiado desleixo. Os guitarristas Jacob Graham e Adam Kessler (este que deixou a banda recentemente) mergulham na onda revivalista dos anos 80 sem qualquer pudor e destilando barulheira. O baterista Connor Hanwick entra na festa com igual vigor. A animada “Me and the Moon” é uma prova concreta dessa afinação juvenil de uma galera que parece se divertir a beça nos palcos. A crítica especializada tem chamado a atenção para as apresentações lúdicas desses norte-americanos, que provam ser bons também de melodias. As ganchudas “It will all end in tears” e “I need fun in my life” indicam que os caras estão num bom caminho.

The Drums acertou nessa festiva e marcante estréia. Que sejam hypes enquanto durem. E que a maturidade não tire desses rapazes esse frescor e energia que fazem do rock and roll eterno. Aproveite bem essa novidade:

http://multiupload.com/FBY3CKFMLX

Cotação: 4

Anime-se com Best Friend:



Vá também de Lets Go Surfing:



Assista:

domingo, 22 de agosto de 2010

De bobs no domingo

Nesse domingo ouvi reggae. E achei todo aquele som tão na contramão das minhas horas estufadas de pressão e responsabilidades. Mas, de qualquer forma, veio o sentimento da domingueira abusada, daquele cio besta, do não ter nada a fazer (meu Deus, isso existe!). Só por alguns instantes. Só por alguns instantes me senti em Sagi, minha praia idílica, refúgio na fronteira do Rio Grande do Norte com a Paraíba. Resolvi, também saudoso desse outro exercício, o de escrever para meu blog, postar esse disco(esse aí da foto). Para espalhar entre os amigos com o domingo de boreste esse sonzinho de maluco, de ouvir em horas de espreguiçadeira. Assim mesmo, resolvi postar rapidindo esse texto expresso e mal alinhavado. Porque agora mesmo dona responsabilidade bateu enfezada na minha porta dizendo que tenho só mais alguns minutos para voltar pro trabalho.

Bem, o disco se chama Rockamovya e é de uma banda que leva esse mesmo e estranho nome. É reggae e dub tradicionalzão, sem invencionices e bem feito. Também pudera, os feras por trás do projeto são integrantes do Groundation (Ryan Newman, Marcus Urani e Harrison Stafford), grupo Cult que tem uma legião de fãs no Brasil. Quem gosta do ritmo, com certeza tem algo dessa galera em sua lista de músicas pra fazer dançar. E esse projeto paralelo tem também o auxílio mais que luxuoso de Leroy Wallace, baterista jamaicano que é praticamente um sinônimo do reggae e do guitarrista Will Bernard, que empresta seu lado jazzy para enriquecer ainda mais o álbum (sinta esse peso na boa “Take the Night”, composta pelo próprio). Ouça o lindo e afinado dub “The Bounty”, com guitarras sonolentas e sensuais, e o malemolente reggae “Warrior Sound”, com teclado roots e um baixo matador que abrem espaço para a voz vibrante de Stafford e viva preguiçosamente o domingo.

Cotação: 4

Legalize:
http://www.mediafire.com/?yf4rl1w9ura4pd6

Ouça umazinha:


Ouça até a última ponta:


Um vídeo de um fã:

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Para ler ouvindo tulipas

Estou fazendo campanha política. Esse fazer tem um peso e comprometimento descomunais. É como entrar num tobogã gigantesco eivado de curvas e emoções inesperadas. De ondas desencontradas de sentimentos afoitos. Raiva, prazer, ódio e sapos engolidos, sapos vomitados. E aqueles bastidores, o melhor da festa, onde tudo acontece. E tudo aquilo que vale a pena: a alegria de um projeto realizado, os personagens animados que vestem a camisa, estufam o peito e saem agitando bandeiras mal impressas. O testemunhal do sinhozinho daquele bairro pobre, esparramando honestidade em cada frase construída. E o brilho intenso no olhar de quem realmente se entrega ao debulhar inclemente da câmera de vídeo. E aquilo que faz pensar se realmente vale a pena: gente com choro represado e outros com choro solto rendidos a pressão das horas. As horas que passam lentas e que desafiam o sono, que não pode chegar. A briga contra o cansaço que namora a cama morna que vira nuvem que abraça o guerreiro morno. Noites não dormidas, noites mal dormidas. Mas, no fim, tem aquele amanhecer iluminado contaminando a esperança de que tudo termine bem naquele dia para que a alma se refestele, lá na frente, nos braços da vitória. Ah, campanha política. Dói, mas é uma delícia.

P.S.: Diante desse quadro, este todoouvido faz uma pausa de alguns meses. Todo ouvido agora só para jingles políticos e discursos nos palanques. Até mais ver. Enquanto isso, ouça tulipa.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Bem na festa de Ben Charles

Na minha infância ao pé do rádio, meu ouvido era inundado pela música brega e romântica de Odair José, Waldick Soriano, Lindomar Castilho, Paulo Sérgio, Núbia Lafayette e afins. Um estouro popular na época. A classe média e baixa do Nordeste se esbaldava, chorava e consumia cachaça escutando esse som passional repleto de dores de amores e chifres colossais. No meio dessa tempestade intimista, um som diferente, mais quente e moleque fazia, para mim, a diferença nos dials das AMs. Era o carimbó de um cara do Pará de nome divertido, hoje cultuado e imitado, chamado Pinduca. Mais tarde, entenderia que o cara nasceu em um estado com um dos ritmos populares mais hardcore já criados no Brasil, a guitarrada, que teve exatamente no carimbó, uma de suas maiores inspirações.

Toda essa longa introdução era para falar que o carimbó e a guitarrada, com sua força rítmica, começam a ser justamente revisitados pelos mais novos, como a interessante banda paraense La Pupuña, e pelos não tão novinhos mais que provavelmente tiveram o carimbó como um dos elementos de sua formação musical, a exemplo do fenomenal Kassin. E foi essa pegada que me chamou a atenção no som de um cara aqui de Boa Vista conhecido Ben Charles. O cara foi um dos pioneiros da cena rocker em Roraima. Em seu upgrade sonoro, evoluiu para um som que ele chama de “carimbóelectroseco”, uma mistura eclética e explosiva de ritmos, onde a guitarra reina impávida e nervosa. O cara, inclusive, é um dos artistas do portal da Trama. Vá em http://tramavirtual.uol.com.br/artistas/ben_charles para conhecer um pouco mais sobre o sujeito. Pra mim, que só pude assistir a um espetáculo do cabra até agora, foi um achado.

Um amigo meu, Ed, talentoso fotógrafo e diretor de arte, chama o Ben Charles de “Chico Science do lavrado”. A conexão tem a ver. As composições do músico bebem de influências múltiplas, provocadas pela localização geográfica de Roraima e a forte miscigenação racial. O músico mistura desavergonhadamente carimbó com música eletrônica com ritmos latinos e, é claro, com rock and roll. Esse caldeirão acaba tornando a música de Ben Charles um tanto inclassificável, mas claramente autoral. E é isso que chama atenção de cara na catarse dessa figuraça em cima do palco. É bom demais ver alguém que se permite divagar, numa puta entrega, a partir de nossa riqueza musical explorando ainda o que de bom a música do mundo já produziu.

O show que assisti do Ben Charles, com sua banda, a Los The Os, foi em sua própria casa, cercado de amigos, numa noite daquelas em que uma chuva fina ameaçava virar chuva grande, iludindo a galera. Era aniversário dele. E o presente foi pra gente. Inspirado, o cantor e compositor destilou sua música bem temperada, com direito a longos improvisos de guitarra. O carimbó presente aqui e ali em seu som me fez voltar à infância. Isso e a energia de suas músicas garantiram uma noite mágica. Quero ouvir mais Ben Charles para poder falar com mais propriedade sobre as experimentações que o cara faz. A primeira impressão, marcante, é que esse cara tem que ser mais ouvido pelo Brasil e pelas gerações mais novas. Até mesmo para implodir a caretice e para que os candidatos a músicos se reinventem e se tornem engenheiros da novidade. Ben Charles, com 23 anos de estrada, mostra o caminho.

Para ouvir a música de Ben Charles e Los The Os vá em : http://www.reverbnation.com/bencharles

Assista a clip da música “Ubá”, momento completamente lounge de Ben Charles:

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Nas asas da intensidade

(Tarde de feriado. Dois sujeitos olhando para o rio que corre manso falam de música ao som de gritos de papagaios em revoada para o descanso.)
Um cara – Baixei um disco de uma banda nova da Irlanda. Butterfly Explosion. Nome esquisito, explosão de borboletas.

O outro – E como seria uma explosão de borboletas?

Um cara – Sei lá...Talvez como um desses fogos de artifícios que encantam os olhos da gente. Desses bem surpreendentes nos quais a explosão se multiplica em outras formando uma miríade de cores que deixa o céu em festa.

O outro – E a banda irlandesa? É por aí?

Um cara – É sim...por aí. É um quinteto que faz o que se costuma chamar de dream pop, aquele rock cheio de texturas, delicado e sinuoso. E são bons nessa linha. Sabem tocar, principalmente o guitarrista e vocalista Gazz Carr. Na guitarra, o cara dialoga bem com outro membro da banda, Jay Carty. Os dois têm uma forte influência dos anos 90...

O outro – Muitos detonam essa década, dizem que musicalmente não teve lá grandes lampejos criativos. Bobageira. A maioria desses reclamões são viúvos da hecatombe sonora produzida nos anos 60 e 70...

Um cara – Podicrê. A imprensa estrangeira compara o som do Buttefly Explosion a My Blood Valentine e Jesus and Mary Chain, duas das bandas mais interessantes e intensas daquela década...

O outro – E...

Um cara – E a comparação procede. Principalmente pelo “noise”, pela distorção da guitarra e baixo que criam um contraste bacana com as melodias. E esse é um dos pontos fortes da banda. Músicas como “Closer”, que abre o disco, tem uma melodia intensa, emocionalmente vasta e que é chafurdada por cordas distorcidas. Uma bela introdução para o que vem depois.

O outro – E o que vem depois continua impressionando? Dá até medo...

Um cara – Olha, os caras não são a oitava maravilha do mundo. Mas, são honestos no que fazem. Quase todo o disco pende para a leveza e a suavidade...tipo...tipo dream pop mesmo... Mais, há por trás disso tudo meio que uma raiva contida que aflora aqui e ali em, aproveitando uma expressão que você usou, lampejos. Isso está bem claro em duas músicas instrumentais do disco, as belas “Automatic” e “Carpak”. As duas começam mais sonolentas até despertarem do meio para diante em distorções e barulho.

O outro – Gosto da distorção como lenitivo para a caretice...

Um cara – Os caras até abusam um pouco disso. Mas, a barulheira não compromete o conjunto da obra. Compensa inclusive a voz pequena, banal de Garr. Esse é a cabeça da história. Sua composição são inspiradas. Além daqueles duas instrumentais que te falei, tem pelo menos, dois grandes achados musicais, além da fantástica “Closer”: a lenta e etérea “Sophia” e a intensa “Crass...See you on the other side”. Mas, se quiser algo mais agitadinho vá de “Chemistry”, um raro momento nervoso da Butterfly Explosion.

O outro – Vou experimentar... Mas, no geral...

Um cara – No geral é um dos bons discos que ouvi esse ano. Um daqueles grandes álbuns de estréia de uma banda. É esperar para ver se os caras não vão descarrilhar na sequência. Por enquanto, vale a pena curtir e provar a boa sopa sonora dos caras. Não engorda e faz bem. Recomendo.

O outro – Ei, qual é mesmo o nome do disco.

Um cara - Lost Trails. Anote.
(Finalmente, o garçon perdido na contemplação do rio percebe que dois clientes, nós, os únicos do bar ribeirinho, estão ali falando de música. A cerveja gelada se avizinha. Já sinto seu sabor. A noite promete.)

Cotação: 4

Experimente os irlandeses:

http://www.mediafire.com/?mmotf0z0mkn

Escute a bela “Closer”:



E também “Crash...See you on the Other Side”:



Os caras num vídeo amador feito em um show ao vivo nos EUA:

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Delicioso apocalipse

Da mesma geração de Céu, Ana Canãs e Mariana Aydar, que se destacaram no Brasil com trabalhos encorpados e inspirados, a paulistana Cibelle ainda não é muito conhecida do público brasileiro. E não será com seu terceiro trabalho, Las Venus Resort Palace Hotel(2010), que ela irá entrar na lista das queridinhas e aclamadas do momento. Uma pena. De todas as citadas aqui, a cantora e compositora que vive em Londres, onde é naturalmente mais cultuada, é a mais instigante. Seu novo disco é um assombro. Conceitual e com algumas esquisitices, o álbum leva o ouvinte para um passeio num resort visitado por turistas após o fim do mundo(!). O convite a essa viagem é feita logo na introdução climática, que sugere um hotel de selva, com pássaros cantando e macacos fazendo graça. E quem embarcar nessa, posso garantir, nada tem a se arrepender.

A Cibelle de Las Venus Resort Palace Hotel, não é a mesma de Cibelle(2003) e The Shine of Dried Electric Leaves(2006), seus dois discos anteriores. Nesses bons trabalhos, a artista emprestava sua arte refinada para regravar, com tintas diferentes e versões irrequietas, clássicos da música brasileira como “Por toda minha Vida"(Jobim e Vinícius de Moraes) e "London London"(Caetano Veloso). E para arranjar, programar e cantar suas próprias composições com toques de eletrônica e experimentações. Agora, ela resolveu dar uma radicalizada. Algo que vinha ruminando em sua cabeça há algum tempo. Em uma entrevista dada a IOL Música, na Europa, a cantora definiu seu trabalho recente como “um cabaret pós-apocalíptico tropical punk”. Para entender essa imprecisa definição é preciso ouvir o CD. Vamos tentar traduzir aqui.

Há ecos de cabaré sim nesse trabalho que em alguns momentos lembra a música bêbada do norte-americano de voz mutante Tom Waits. É o caso da malemolente “Melting the Ice” . Há ecos do punk, na anarquia de “Mr and Mrs Grey”, uma das melhores do CD, onde a mudança de andamento sai de uma levada mais lenta para um inesperado e estridente solo de guitarra. E há ainda aquela carga tropical em vários momentos do álbum traduzidas em vinhetas e introduções que remetem à ambiência de uma floresta densa, como se Cibelle dissesse o tempo todo: você continua refém do Vênus Resort Hotel e da minha proposta conceitual. Em todo esse amálgama conceitual existe um certo ar de nostalgia. É como se a trilha sonora do pós-apocalipse fosse mambos e sonoridades saídas de filmes dos anos 40 e 50 do século passado gravados em praias e florestas paradisíacas.

Nesse de volta para o futuro de Cibelle existe uma indelével graça. É um retrô revigorado e transmudado e modernizado pelas guitarras e teclados, que ora caem no kitsch ora partem para o refinamento. Impossível não beliscar a nostalgia como na jazzística “It’s Not Easy Being Green”. Tudo isso muito bem costurado por arranjos elaborados onde a sutileza e riqueza dos instrumentos contribuem, em grande parte, para o vigor deles. E acima de tudo isso, temos uma cantora afinada, de voz elegante e hipnótica. A paulista destila seu perfeito inglês em composições inspiradas. A sequência inicial é realmente matadora. Da alegrinha “Underneath the Mango Tree”, com ecos havaianos, até a triste e envolvente “Sad Piano”, o ouvinte já está completamente deleitado e se sentindo a vontade no Hotel de Cibelle.

Diferente ainda dos trabalhos anteriores, a artista só abre espaço para a língua mátria em dois momentos. E estes estão entre os melhores do álbum. São o samba-rock, na linha jorgebenriana , “Sapato Azul”, e a bacanérrima “Escute Bem”, com sua levada meio brega, arrematada pelo tecladinho sessentista e uma cadência manhosa de arrepiar. Senhora de si, Cibelle ousou e lançou um dos grandes álbuns brasileiros do ano. Las Venus Resort Palace Hotel é realmente um espanto, uma obra robusta, dessas para se ter na cabeceira da cama e mostrar para os filhos e netos.

Cotação: 5

Não esqueça os passaportes:

http://depositfiles.com/pt/files/at9n45f5m

ou

http://freakshare.net/files/v9lvngvt/Ci_Las_Venus_Resort_Palace_Hotel.rar.html

Vá de “Mr and Mrs Grey”:



Escute também “Escute Bem”:



Veja o vídeo de “Lightworks”:

sábado, 8 de maio de 2010

O romance mirabolante de Glorinha e Antenor

Bem sacudidinha. Passa rebolando dobrando as esquinas, entortando pescoços, provocativa que só. Toda senhora de sua irreparável e negra sedução. Grandona, coxas largas como o sorriso, solto e divertido. Nem pobre nem rica. Dinheirinho que dá pros gastos com a roupa de promoção e os produtos de beleza divididos em cinco vezes. Trabalhando duro como funcionária pública, no escritório do seu Armando, chefe do almoxarifado, que babava descaradamente por ela. O depravado ganhou até babadouro dos amigos, só de sacanagem, num desses amigos secretos de fim de ano. E ela, altaneira, como porta-bandeira de escola de samba em dia de graça, sabia de todas as histórias e fingia total desconhecimento, pra manter o respeito e o emprego. Saía do trabalho desfilando sua beleza abrasiva e dobrava as esquinas deixando homens e mulheres a deriva.

Em casa, asseada e com poucos móveis, uma estante comprada nas casas Bahia e já paga, uma mesa de centro com flores amarelas de plásticos bem no meio, ela caia pesada nos sonhos. Sonhava com um homem como tinha lido numa revista de fofocas. Grande e bonito e cheiroso. Trabalhador, dono de uma pequena propriedade (ela adorava essa palavra, cheia de r, p e d) com uma piscina na frente. Nem precisava ser grande, a casa e a piscina. Só pra domingos de churrascos. Com amigos e pagodes da hora. Ele, assim, branco, educado que falasse as palavras com calma, soletradas como faziam as crianças sabidas naqueles programas de sábado a tarde. Que tivesse estudo e pudesse ler histórias pra ela no meio da noite, depois do sexo longo e redentor. Ela encostada no peito dele, caladinha, ainda cheirando a suor, respirando as palavras de contos de fada saídas da boca dele.

E como a natureza prega as suas peças e ela acreditava piamente nas peças que a natureza pregava, eis que calhou de num dia de terça-feira um desses esbarros espalhafatosos de provocar risadas nos transeuntes. Numa esquina. Ela se estabacou no chão, desancando sua até então impávida elegância natural. Ele um magrelo desengonçado, feio que só, quicou no corpo escultural dela, enroscou-se nos próprios cambitos e se desmilinguiu feito macarrão em água fervente, tombando fragosamente na calçada. Apulpos da platéia. Risos altos ribombaram nos metros quadrados ao redor do acidente besta. Ela, furibunda, torpedeou:

- Imbecil. Olha por onde anda!

O desmilinguido ainda zonzo pelo tombo tomado, atrás do riso tímido, soltou a boa do dia:

- Seu impropério se desvanece diante de tanto fulgor.

A morena franziu o senho desentendida e com uma cara francamente divertida. Que língua é essa, pensou. Mas, não pode esconder o sorriso de cantinho de boca diante da figura e linguajar engraçados do magricela. Era a senha que faltava para que o pobre moço estendido no chão se levantasse de um sem pulo e se desmanchasse em salamaleques para ela. Por uns momentos ela anuiu que o rapaz de cabelos crespos e olhar doce tinha lá seu charme. Deixou até o telefone com o moço. Ali, começava, sem que os dois soubessem, uma relação digna de um romance, onde amor e prazer, desejo e rejeição se uniriam de forma tão intensa como poucas vezes se veria no mundo. Começava o romance mirabolante de Glorinha e Antenor.

domingo, 18 de abril de 2010

Maia Magnético

O nome já traduz um pouco a proposta. Mundialmente anônimo – O Magnético Sangramento da Existência(2010). Mimetismo e viagens, mixagem e experimentação. Ele já está acostumado a isso e cria seu som efusivo a partir de explosivas e suingadas referências. Hip hop, dub, Jorge Ben, Chico Science e Nação Zumbi, quase tudo música de negro. Da melhor e mais inspirada. Lúcio Maia, o guitarrista virtuoso do Nação, homem por trás do projeto Maquinado acaba de parir um novo disco, o segundo, depois de O Homem Binário (2007). O título é aquele viajandão lá de cima e o resultado, bem... quem tem ouvidos que escute. E se não há surpresas, há encantamento e uma coerência monstruosa.

Quem conhece Lúcio Maia, cabeça pensante e ativa do seminal Nação Zumbi, e do seu primeiro projeto solo, sabe que o cara é impulsivo e irrequieto. Se em O Homem Binário, ele desenvolveu potência criativa, mixando suas referências musicais em um disco mais cartesiano, na obra solo seguinte, radicalizou. Está mais experimental e cosmopolita. Daí, talvez, o mundialmente anônimo que aparece na capa do CD. É anônimo porque junto cacos da música global, cacos de sonoridades que fizeram e fazem sua cabeça. É também anônimo porque transparece o sentimento do mundo, a revolta com o caos ético, a violência e com o desrespeito acelerado ao planeta, nas linhas e entrelinhas das letras. Ideologia, Maia quer uma para viver. E ele reivindica isso num disco orgânico e difícil.

Não vai ser de cara que você vai gostar de Mundialmente Anônimo. Já na primeira faixa, Lúcio Maia demonstra que não vai oferecer feijão com arroz, nem que está muito disposto a fazer algo mais palatável. "Zumbi", de Jorge Ben, ganha uma versão torta, incandescente. Uma citação a Clara Crocodilo, personagem criado por Arrigo barnabé e que redundou num dos discos brasileiros mais conceituais e revolucionários da década de 80 do século passado, abre a sonzeira. Moderno e roqueiro, Maia se ampara em sua guitarra virulenta para dar peso a um dos clássicos de Jorge. A percussão e a bateria eletrônica, também densas, juntam-se ao carnaval cibernético proposto pelo pernambucano.

A carga sonora sem fronteiras produzida em "Zumbi" estão presentes também na discursiva “Provando a Sanidade”, com percussão e guitarra, sempre precisas, no talo. Ao fundo, Maia destila suas impressões sobre o mundo e sobre o homem, pobre de nós, no meio do tiroteio provocado pela nova ordem econômica. A tradução do louco mundo de hoje é feita também, dessa vez sem palavras, na interessante e emblemática "SP". Entre vociferações vocais inaudíveis e a palavra São Paulo, modificada por computadores, o músico descarrega barulhos de sirenes, de buzinas numa profusão experimental que mistura samba, hip hop e outros ritmos. A guitarra mais nervosa que nunca se sobressai nesse instrumental de primeira.

Tirando o pé do acelerador, Lúcio Maia, oferece ainda ao ouvinte, como pausa necessária, um som, digamos, mais normal. Na versão, longe da fidelidade, de "Super Homem Plus", do parceiro de mangue beat Mundo Livre S.A, o músico cadencia tambores, metais e guitarras, para dar uma sensualidade inesperada a uma das melhores e mais ácida música criada por Fred 04. A mediana “Girando ao Sol” e a instrumental “Recado ao Pio, extensivo ao Lucas”, reverbs e guitarras languidas são bases para viagens hipnóticas. O toque latino, com cordas que lembram o grande Carlos Santana, da pop “Pode Dormir”, e o rap chatinho “Tropeços Tropicais”, cantada por Lurdes da Luz, do Mamelo Sound System, destoam um pouco do projeto como um todo. Mas, aí, você já está rendido a arte maior de Maia, esses grande arquiteto da música moderna. Mestre da fusão rítmica, esse carinha fez de Mundialmente Anônimo, um disco de responsa.

Cotação: 4

Vá de Maquinado:

http://www.mediafire.com/?nm3jynm2jhn

Ouça "Zumbi":

E também "Super Homem Plus":

Assista “Pode Dormir”:

segunda-feira, 29 de março de 2010

Mantendo a linha

Existe um gênero musical que marcou os anos 90 do século passado ao mergulhar consubstancialmente tristeza em um mar de eletrônica e estranheza. Sonoridade depressiva contraposta a grooves e batidas que produziam doce contraste e contundência. A proposta partiu do coletivo Massive Attack, um grupo da cidade inglesa de Bristol, e foi batizada na época de trip hop. Desde o primeiro álbum, Blue Line(1991), o grupo lançou apenas cinco trabalhos, todos cercados de grande expectativa. O último acaba de sair do forno, Heligoland(2010), um trabalho de fôlego que reforça a fidelidade do duo Robert “3D” Del Naja e Grant “Daddy G” Marshall, sobreviventes da formação original, a música viajandona que ajudaram a criar.

Não existem grandes novidades ou traços evolutivos em Heligoland, que chegou sete anos depois do bom 100th Window (2003). E isso, que fique bem claro, não é depreciativo. Quem conhece o Massive Attack sabe que a maçaroca climática que produzem é por si um belo presente para ouvintes de bom gosto. É uma fórmula complexa que, se bem repetida, já vale o dinheiro gasto no CD original. No último disco do grupo, os arranjos super bem elaborados, o alto nível da produção e a inspiração afiada de Del Naja e Daddy G Marshall, que se cercaram de convidados de estirpe nobre, garantem uma boa viagem aos fãs e a sobrevida de um gênero musical cultuado no passado, mas que veio perdendo espaço nesta década.

E a viagem começa muito bem com "Pray of Rain" que resgata toda a força do trip hop, da aspereza soturna da atmosfera que a melodia cria ao uso estudado dos barulhinhos eletrônicos. Acompanhado de uma bateria tribal e um baixo bem marcado, o convidado Tunde Adebimpe, da ótima banda Tv on the Radio, empresta sua voz para interpretar uma melodia que começa melancólica e ganha pinceladas mais alegres lá na frente, num delicado crescendo. É Massive Attack como antigamente. Mesmo espírito de “Paradise Circus”, marcada por palminhas, uma programação eletrônica minimalista e a voz suave, quase infantil de Hope Sandoval. Da mesma lavra da bela “Babel”, com uma Martina Topley-Bird, pioneira do trip hop, esvaindo-se em sensualidade na batida de um drum’n’bass viajandão em composição de arrepiar.

O Massive Attack explora com sobras o terreno do trip hop de raiz em quase todo o álbum. E belisca referências do groove negrão, da black music, que só ajudam a tornar as músicas ainda mais sedutoras e chapantes. Caso de “Splitting the Atom”, uma das mais legais desse Heligoland, com o jamaicano Horace Andy mesclando sua voz a batidas eletrônicas hipnotizantes em uma levada meio soul. Del Naja e Daddy G Marshall buscam ainda inspiração em outras praias, como na interessante “Girl I Love You”, na qual é possível perceber ecos de música indiana. No mais, encaram suas viagens de cara lavada e até com alguma leveza, como na bem arranjada “Psiche”, com um início arrebatador e a ótima Martina Topley-Bird mostrando mais uma vez sua afinada arte de encantar.

Heligoland só não é cem por cento porque há algumas viagens na maionese. A maior delas é a experimental “Flat of the Blady”, que destoa de todo o resto do álbum com seu opressor estranhamento e um Guy Garvey, da bacanuda banda Elbow, cantando desleixadamente e tornando a canção ainda mais incômoda aos ouvidos. Del Naja assume os vocais na tensa e arrastadíssima “Rush Minute”, outra decepção, que se perde na arrogância dark de sua construção. E por pouco Damon Albarn, do Blur e Gorillaz, fora do tom, não estraga a inspirada e contundente “Saturday Come Slow”. Nada disso, porém, tira o brilho dessa incursão musical profundeza adentro desses ingleses bons de bola. Valeu a espera de sete anos: Heligoland está a altura de seus criadores e a gente tem mais é que agradecer.

Cotação: 4

Entre na roda:

http://www.megaupload.com/?d=R4U1E1LP

Escute "Pray for Rain":



Vale a pena ouvir também "Psyche":



Assista a filme inspirado em "Saturday Come Slow":

quarta-feira, 3 de março de 2010

Na calma das horas

Tem hora que a gente se sente assim com uma volumosa preguiça, uma vontade irregovável de se afundar em uma poltrona, a ela querendo se incorporar, como parte inseparável de sua malha de tecido. Assim mesmo, quieto, mudo, sem querer mexer uma palha. Como se algo, contra a nossa vontade, nos fizesse viver em câmera lenta, feito reprise de um gol, deixando que tudo o mais viesse solenemente se unir aquele inquebrantável reino de zenitude. O último do Beach House, Teen Dream(Subpop, 2010) me deixou desse jeito sem vergonha, meio aluado, confiscado pela serenidade de um som de baixa rotação, low fi clássico, amparado por melodias bem construídas e bom instrumental.

De Baltimore, nos EUA, a dupla formada por Alex Scally(guitarra) e Victoria Legrand(vocal e teclado) vive seus dias de glória e bajulação no universo paralelo onde mora a volúvel e radical tribo dos indies. O terceiro disco, lançado em janeiro, caiu de cheio também no gosto da crítica especializada, que dispensou quilométricos elogios ao dream pop do casal. E Teen Dream é sem dúvida o melhor e mais bem cuidado álbum do duo. É uma evolução natural, concreta e, claro, muito bem vinda, dos trabalhos anteriores, Beach House(2006) e o lindo Devotion, um dos discos marcantes de 2008 e que se tornou a chave mágica que abriu um mundo de possibilidades e conquistas para aqueles dois norte-americanos.

Apadrinhados pelo selo Subpop, cujos executivos costumam fazer sensíveis escolhas, e maquinados pela produção inteligente de Chris Coady, o Beach House aninhou-se em uma igreja para gravar seu som em um território perdido entre o onírico e o ensolarado. Alex e Victoria produziram dessa vez um som mais encorpado, sem perder o encanto e a ternura praticados com devoção nos trabalhos anteriores. Os fãs não hão de reclamar. Afinal, estão lá no mesmo lugar, ainda que mais comedidos, o teclado monolítico, meio oitentista da vocalista da dupla, presente com tanta intensidade em pequenas pérolas como “Walk in the Park”, decididamente uma das mais legais do álbum, e a cool “Lover of Mine”, e a guitarra lúbrica da cara metade, provocativa na correta “Silver Soul” e slide na medida certa na mediana “Norway”.

O que faz de Teen Dream bacana é a leveza carregada de seriedade que os dois impõem ao seu indie melódico. São melodias com letras românticas e imantadas de um poder quase mântrico. E aqui não se leia pesar ou angústia ou estupefaciência. Talvez torpor, mas um efeito prazeroso provocado pelas boas canções. É possível visualizar um padrão nesse trabalho que leva a essa sensação. A percussão e teclados são bases enxutas, muitas vezes repetitivas e lineares, para a guitarra mais intransigente de Alex Scally e a voz equilibrada de Victoria Legrand, trabalhada entre momentos explícitos de suavidade e outros de certo desespero. Tudo devidamente equacionado por arranjos que incorporam instrumentos e pesos antes estranhos ao trabalho do duo.

É dessa forma que o ouvinte é pego pela cabeça na terna “Used to Be”, na qual a melodia marcante é acompanhada de início por um pianinho confortável que volta num breque esperto depois de um refrão onde o crescendo do instrumental hipnotiza. Ou ainda em “Better Times”, que explora mudanças delicadas de andamento com uma guitarra que se mostra sensual, na maior parte da música, e viril, em raro instante. Em todas, contudo, prevalece uma ternura, aquela suavidade, muito bem traduzida na boa “Take Care”, que fecha bem o álbum, mantendo toda a aura low fi. Um clima que me fez ficar assim no remanso de minha poltrona deixando se levar, como tábua na maré, pela suavidade da proposta musical do Beach House. Um disco para ouvir na calma das horas.

Cotação: 4

No clima da Casa de Praia:

http://www.4shared.com/file/161699603/9843558e/TDBH-musicandcigarette-rafael7.html

Escute “Better Times”:



E também “Love of Mine”:



Veja o vídeo de “Norway”:

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Fúria na agulha

A pernambucaninha de coração, de rosto delicado, jeito de menina desamparada, é um furacão. Nasceu na Bahia sim senhor, mas carrega nos ombros e dentro da cabeça as multiinfluências de uma parabólica Recife onde desenvolveu a arte de cantar e compor. E todo esse fogo e uma vontade intempestiva de fazer diferente ela vomitou de uma tacada só no instigante trabalho de estréia, Eu Menti pra Você(2010). Moça cheia de atitude, Karina Buhr, se apresenta como uma deliciosa e consistente novidade no interessante e pouco conhecido mercado de música alternativa. “Minha fúria odiosa já está na agulha”, canta a danada em “Esperança Cansa”. Fúria bem vinda. Do bem. Na agulha, uma revelação pronta e acabada para ser descoberta e digerida sem reservas.

Karina Buhr já tem algum tempo de estrada. Passou por maracatus, sorvendo influências e batuques, participou de CDs e fez shows com grande parte dos nomes mais marcantes da cena de Pernambuco, como Nacão Zumbi, Eddie, DJ Dolores, Mundo Livre e companhia ilimitada. Ganhou, contudo, mais visibilidade quando se reuniu a outras meninas endiabradas botando pra ferver e destilando cultura no radical Comadre Florzinha, banda moleque que revisitava e modernizava o cancioneiro folclórico nordestino. Foi pra São Paulo e deixou o santo baixar, cantando e atuando, com Zé Celso Martinez, dono do terreiro no seminal Teatro Oficina. Tudo em tão pouco tempo. De tantos volteios Brasil e mundo afora (esteve na Europa em várias apresentações musicais), de bicada em bicada na nossa arte de chão, a moça acabou criando seu tempero próprio e que pode ser sentido em Eu Menti pra Você.

O que se pode perceber no disco é uma Karina Buhr aberta pro mundo, fazendo uma música viril, mais cheia de força e personalidade do que aquilo se vê na maioria do rock machudo feito no Brasil e que chega até nós pelas grandes gravadoras. Porque no disco de estréia da pernambucana há um misto de candura e fúria, aquela de que ela falou na música que citei no início da resenha, que se complementam com harmonia ao discurso direto e pontiagudo das letras que compõe. No rock brando com suspiros de improviso instrumental, que dá nome ao trabalho, ela já de cara provoca o ouvinte: "Eu sou uma pessoa má. Eu menti pra você. Você não podia esperar ouvir outra mentira de mim, que pena eu não sou o que você quer de mim.

A faquinha da cantora corta amolada a carne tanto no verbo quanto na melodia. Em "Avião Aeroporto", um electo rock com guitarra mântrica, canta e fala em harmonia estrangeira a nossos ouvidos, moderna sem ser empertigada, propondo uma viagem concretista, seca: "Pelo avesso, vamos pro fundo. Arame farpado na cabeça, vento, catavento, vulcão, pâncreas, fígado, coração". A fúria se faz sentir ainda na ótima “Nassira e Najaf”, onde fala de uma guerra sem fim em Bagdá ou sei lá que vemos diariamente na televisão, cuspindo fogo no refrão assombroso: “Dorme logo antes que você morra”. Intensa como uma espécie de PJ Harvey dos tempos do vociferante Dry.

Mas, não é difícil que tenha em Karina Buhr um pouco de PJ Harvey ou também da experimental Laurie Anderson. Há semelhanças com a sonoridade cáustica desta última no diálogo claríssimo com a modernidade alinhavado em "Telekphonen", cantada em alemão. Há boas lembranças de um som eterno como o da banda paulistana Patife Band, na alucinada “Soldat”. Enfim, há ecos do mundo todo na moça. E para fazê-los ainda mais audíveis, Buhr conta com o apoio de músicos de primeira que ajudam a dar asas ao vanguardismo e as suas rupturas poéticas. Nomes como Guizado (e seu incrível trompete), Edgard Scandurra e Catatau, comandando as guitarras, Bruno Buarque(bateria), Mau (baixo), Dustan Gallas (teclado, piano), Otávio Ortega (bases eletrônicas), Marcelo Jeneci (acordeon e piano), sem falar na canja do percurssionista cubano Pedro Bandera e da atriz alemã Juliane Elting.

Essa intrépida trupe funciona também que é uma beleza no lado mais doce de Eu Menti pra Você. O rock azeitado e cheio de idéias da artista dá espaço para baladas agridoces que reforçam uma convincente veia poética. É o caso da elíptica "O Pé", uma quase ciranda em que sobressai mais uma vez o lirismo da letra: “O céu embaixo das nuvens, a terra por baixo do asfalto, o centro da terra que puxa a gente, a gente pula contra a vontade do chão”. Na mesma linha, salta aos sentidos a ainda mais lenta e linda "Mira Ira", na qual repete dengosa e sedutora: “Não miro a ira, não miro mas te acerto no peito, quando mudo meu amor de endereço”. E surpreende ainda quando larga de mão da poesia e parte para a informalidade, reta e ligeira, no ska reggae “Plástico Bolha”, em que decreta que não está a fim de corre corre: "Eu quero passar a tarde estourando plástico bolha". De um jeito ou de outro, a pernambucaninha fez um álbum bacanudo, honesto e que tem tudo para marcar o ano de 2010. Gostei muito e recomendo de peito aberto, pedindo desculpa, por fim, pelo longo, longuíssimo texto.

Cotação: 5

O caminho das pedras:

http://www.4shared.com/file/219179707/3c7e0ec2/Karina_Buhr__2010_-_Eu_Menti_P.html

Escute “Avião Aeroporto”:




E também “Telekphonen”:



Veja Karina Buhr cantando “Vira Pó”:

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Mais electro menos rock

Delphic é uma banda esperta. Chegou cheia de gás, deixando bem claro que não brinca em serviço e está disposta a se firmar no animado segmento electro rock. Os garotos de Manchester estréiam com um CD, Acolyte(2010), que mexeu positivamente com a crítica neste começo de ano. A banda ficou recentemente em terceiro lugar numa lista do sistema de comunicação britânico BBC que arrisca nomes que podem marcar o cenário musical neste fim de década. Tanta badalação, é claro, deixa qualquer um com o pé atrás. Afinal, a mídia adora superlativizar o trabalho de alguns eleitos. O grupo em questão não é essa maravilha toda, mas até que teve competência para fazer um álbum redondo e com algumas músicas realmente pegajosas e bem produzidas.

Delphic é James Cook (vocal), Matt Cocksedge (guitarra), Dan Theman (drums) e Richard Boardman (programação eletrônica). O quarteto bebeu da fonte revitalizadora de grupos como o saudoso New Order e o superestimado, na minha opinião, Klaxons para produzir um electro rock sem grandes vôos mas com carisma, além de clips bem produzidos que fazem a alegria dos videomaníacos. Na verdade, essa galera ampara-se na utilização precisa de sintetizadores, em maior profusão, e guitarras para criar aquele clima dançante e com tons modernos que marcou os anos 90 da década passada. É, no fundo, mais electro que rock. “This Momentary”, que tem um vídeo rodando em alta rotação na internet, é um bom exemplo dessa pegajosa pegada eletrônica. O sintetizador se sobrepõe a uma guitarra climática numa canção melodicamente bacana, com vocoder e vozes marcando passo forte, seduzindo o ouvinte desavisado.

Esse lado mais electro se faz presente sintomaticamente em dois momentos bem diferentes no disco, que mostram um grupo experimentando suas ondas particulares. Se em “Red Lights” assume uma postura mais dance total, com sonoridade deja vu e feita desavergonhadamente para as pistas – “Eu não consigo parar as luzes vermelhas”, dizem, numa metáfora ao “verme” que se instala naqueles alucinados por um remelexo – na longa(8 minutos!) e quase instrumental “Acolyte”, revela engenhosidade e um talento promissor para compor. Nessa última, as vozes dobradas entram como mais um instrumento numa música e a tecladeira cheia de ginga invoca inapelavelmente os deuses da dança. Tensão que se repete, ainda mais elevada, na agitada “Halcyon”, uma das melhores e mais legais do álbum.

As guitarras, a porção rock, diz alô de forma mais explícita e estanque em composições interessantes. Uma delas é “Doubt”, que, aliás, com seu refrão pegador, foi a primeira música de trabalho de Acolyte. Pulsante e bem acabada, como todo o disco, diga-se de passagem, o petardo tem realmente alma rocker e um bom equilíbrio entre cordas e sintetizador, que, afinal, caracteriza o gênero musical que a banda defende. Os demônios do rock and roll passeiam ainda em “Clarion Call”, que começa calma e aos poucos vai explorando efeitos eletrônicos, como de um telefone ocupado, num amálgama crescente e eficiente de sons, e na boa “Counterpoint”, num raro momento em que a bateria e o vocal expõem mais virilidade.

A excelente produção do álbum não esconde porém uma certa frouxidão musical, sentida nas entrelinhas de músicas dispensáveis como “Submission”, uma balada sem graça e pouco inspirada, ou ainda em “Ephemera”, com seus dois minutos de clima estranho e robótico, composição que é exatamente o que seu nome diz, risível. Essas derrapadas, somadas a sensação de que há um certo maniqueísmo e cerebralismo no engenho dos arranjos, é que me fazem ficar com a pulga atrás da orelha. Posso estar sendo com isso, eu mesmo, estupidamente cerebral. Se livrando desse ranço e olhando para Acolyte de forma mais serena e menos dura, dá para dizer, contudo, que é um disco que merece uma escutada. O grupo tem, com certeza, ziriguidum para fazer os viciados nas “luzes vermelhas” se esbaldarem.

Cotação: 3

Só no contro c control v:

Ouça a animada “Halcyon”:



Confira ainda “This Momentary”:



http://www.megaupload.com/?d=WNX0MZC5

Assista ao ótimo clip da bacana “Doubt”:

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Nada elementar, meu caro

Sherlock Holmes é uma figurinha fácil do cinema. Dessas repetidas. Para garantir interesse das platéias pelo esquemático personagem, é necessário tentar um bom diferencial, ter uma boa carta na manga. O britânico Guy Ritchie, mais conhecido como o ex-marido de Madonna, autor da nova versão em cartaz nos cinemas, Sherlock Holmes(2009), tinha uma proposta mais radical e pelo menos dois bons trunfos: os atores Robert Downey Jr., redivivo depois do sucesso de O Homem de Ferro(2008), e o sex simbol Jude Law nos papéis principais do longa-metragem. Bem amparado pelo elenco, o cineasta pode ficar livre para exercitar seus maneirismos, com alguns dispensáveis excessos, e dar corda a grandiosidade e tom espetaculoso que a história contada exigia.

O filme de Ritchie se passa na Inglaterra vitoriana, em fins do século XIX, ambientada numa Londres cinza e em pleno desenvolvimento industrial. Essa cidade é uma das personagens da história que encontra Sherlock Holmes(Downey Jr.) e o fiel escudeiro Watson(Jude Law) devidamente entrosados. As quase duas horas da fita se concentra em um dos casos do detetive criado pelo escocês Sir Arthur Conan Doyle, no qual se misturam suspense e boas doses de magia negra. Os dois investigadores se esfalfam para desvendar o mistério que se esconde por trás da assustadora ressurreição de lorde Blackwood (um caricatural Mark Strong), líder de uma seita secreta, que pretende dominar o mundo depois de subjugar o país britânico.

O que é notável e digno de aplauso no longa-metragem do diretor britânico é a forma como ele nos apresenta um alucinado Sherlock. Não espere encontrar aquele detetive almofadinha e asséptico presente em obras como O Cão dos Baskervilles(1959), com Peter Cushing no papel principal, e o mais recente e risível Sherlock Holmes e o Caso das Meias de Seda(2004). O personagem em sua última aparição cinematográfica não poderia ser mais trash. Autoritário e compulsivo, o investigador, interpretado por um afiado Downey Jr., passa semanas enfurnado em um quarto de hotel barato testando teorias e fazendo experiências com moscas e componentes químicos. A aparência de Holmes é, durante todo o filme, invariavelmente suja, assim como a intolerância e um certo ar blasé são igualmente elementos fortes na caracterização do protagonista. O ator por trás da máscara empresta uma angústia e ansiedade inesperada ao tipo vivido por ele, o que só aumenta o desconforto daqueles que preferem o tradicional e frio jeitão britânico que marcou a clássica figura da literatura policial.

Watson é a antítese de Holmes. Jude Law se investe das virtudes e lugares comuns do quase submisso parceiro do investigador. Guy Ritchie chega a brincar com o espectador na primeira terça parte do filme, sugerindo um relacionamento homossexual entre os dois. As primeiras discussões dos dois parecem briga de amantes. A resistência de Sherlock ao namoro entre Holmes e Mary (Kelly Reilly) seria ciúmes ou apenas uma forma de se afastar de uma orgânica solidão, mantendo o amigo mais próximo? A brincadeira se desfaz quando entra em cena, para dar um tempero a mais na elétrica história, a engraçada e atlética Irene Adler, uma trapaceira vivida com correção por Raquel MacAdams. Law, um bom ator, vive seu personagem com brilho e acerto, num contraponto talentoso à efusividade cobrada pelo Sherlock imaginado por Ritchie e inspirado na HQ de Lionel Wigram.

O que aproxima os dois personagens, na verdade, além do amor pelo mistério, é mesmo a adrenalina. Sherlock Holmes é um filme de ação. Muita ação. O elemento investigação não é o forte dessa obra de Ritchie(o cara da foto). O famoso raciocínio lógico e dedução engenhosa, marca maior da criação imortal de Doyle, só aparece aqui mais delineado em momentos de puro exibicionismo do detetive, como quando ele descreve cruelmente, cara a cara, a personalidade da Mary de Watson. Ou de forma muito célere no final, quando explica os pontos mais acabrunhantes do caso que desvendou com sua genialidade. Essa opção pela correria vista no longa-metragem é uma maneira de ir pra galera. De alimentar o público com a carga de eletricidade que os estúdios hollywoodianos imprimem, como aditivo indispensável, em seus filmes. É a dinâmica de um mundo acelerado cada vez mais pelos meios eletrônicos como a televisão e a internet.

E ação, com estilo, é um dos maneirismos de Guy Ritchie. Nessas horas, o cineasta se sai muito bem e coloca o filme no nível de excelência de outros produtos bem acabados de Hollywood. Os traços estilosos das tomadas das lutas e tiroteios vistos em seus trabalhos anteriores, como os bacanas Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes(1998) e Snatch (2000) repetem-se aqui, com o auxílio, é claro, de efeitos mais impactantes. A cena da luta de Box de Holmes com um brutamontes num ringue fétido de Londres, com nauseantes câmeras lentas, é exemplar. As brigas se sucedem com constância no filme, o que, na verdade, cansa um pouco e abre espaço para alguns excessos visuais aos quais Ritchie está acostumado. É tudo muito espetacular na Londres movimentada e em franco crescimento representada com preciosismo no filme. Por isso, é bom ver com a fita com desprendimento e pronto para muita ação.

Vale assistir a fita menos pela história em si (o roteiro se perde em meio à suntuosidade das imagens e cenas de ação) e mais pela tentativa bem sucedida de Ritchie de surpreender o espectador com um detetive mais mundano, diferente daquele apresentado anteriormente, um tipo extremamente humano na fronteira que divide a genialidade da loucura. Pela precisão da interpretação de Downey Jr. e a ótima química com Law, reforçada pelos diálogos ácidos e inteligentes dos dois personagens. Pelas estudadas cenas de luta e por uma grande direção de arte(forte candidata ao Oscar desse ano), com uma Londres extravagante e figurinos marcantes. Ainda prefiro o Ritchie de início de carreira, nos dois filmes citados acima, mas, esse Holmes é diversão garantida, uma boa pedida para domingos modorrentos.

Cotação: 3

Assista ao trailer do filme: