sábado, 5 de dezembro de 2009

Cozinhando o aipim

Poucas raízes têm uma relação tão significativa e profunda com o Brasil quanto a boa e velha mandioca. Ou aipim. Ou macaxeira. Nomes diferentes para um tubérculo que é a base da alimentação dos sábios índios brasileiros. Aqueles que foram “descobertos” pelo “descobridor” das terras tupiniquins. É alimento barato, substancioso e que inspira, por seu sabor neutro, deliciosas mestiçagens gastronômicas (que tal um Escondidinho – mistura de mandioca, carne de sol e queijo -, aí?). O título do primeiro álbum do pernambucano Fernando S., Aipim não é Macaxeira(2009), tem esse sabor radical de um país mestiço, que sorve influências mas carrega inapelavelmente em sua essência a buliçosa alma verdeamarela.

Aipim não é Macaxeira, que me chamou atenção de cara pelo bem humorado título, é obra de arquitetura coletiva. Tem aqui trechos de trilhas de cinema, parcerias gestadas como um filho, lentamente, o baixo de um colega de batalha, a voz terna de uma amiga de guerra, o violão gravado ao vivo. O álbum, segundo Fernando S., foi parido em dois anos, no compasso do tempo de cada um dos participantes do trabalho. O resultado é complexo e multifacetado, como o Brasil, com estilhaços de rock, MPB e música eletrônica. Um caldeirão ao qual os irrequietos músicos pernambucanos, dos mais criativos do país, já estão acostumados.

O disco de Fernando S. é democraticamente dividido. Meio somente instrumental. Meio contando com as vozes de amigos do Rio de Janeiro e Recife. É também um tanto desigual, até porque se oferece generoso a interferência, melhor seria dizer cumplicidade, de tanta gente. O CD é orgânico nas faixas instrumentais, onde pode ser percebido, em vários momentos, referências ao rock dos anos 60 e 70 no som do autor. Na bela “Fenix”, por exemplo, que abre o trabalho, o cara utiliza-se de um órgão Hammond e de barulhinhos eletrônicos para criar uma atmosfera viajante, típica do rock progressivo, quebrada pela entrada rascante da guitarra.

As boas idéias sonoras e as melodias consistentes perpassam as músicas exclusivamente instrumentais. O piano e a guitarra de Fernando se dizem presentes lindamente na quase trip hop, a melancólica “A Falta de Estrela”, uma das melhores do álbum. Nessa direção temos ainda a também viajandona “Ao Redor”, com muito eco de baterias e utilização de efeitos bem característicos daquele outonal gênero musical. Tem cara de cinema com sua evocação de paisagens etéreas e carregadas. Mais rocker e interesante é “Salvatore”, com suas cordas pesadas substituídas, depois que cai a ficha do músico (“Caraca, viajei”, diz o cara no meio da composição), por uma guitarra mais melodiosa, bem anos 70, levada com competência pelo agregador do disco.

Se o dono do projeto acerta em quase todas as faixas instrumentais, o mesmo não se pode dizer daquelas em que pediu a força de amigos letristas. Músicas chatinhas como a jovemguardista “Vestido Azul”, com a participação da cantora Mary Gaspari que não ajuda com sua vozinha infantil a levantar a canção, e “Caminhante Dub”, com Bruno Muniz, do grupo Laranja Dub, no vocal desapontam. Em compensação temos o divertido rock brega “Ventilador”, com a voz personalíssima de Carlos Posada, da banda Bárbara e os Perversos, e, principalmente, “Naianga”. Gravada ao vivo, essa canção é interpretada com alma por um surpreendente Mani Carneiro (o cara da fotografia ai ao lado), cantor afinado e timbre marcante. Tocante, é MPB de rara estirpe, com letra e melodia de arrepiar, uma das mais lindas que ouvi no gênero esse ano.

Ouça "Naianga" com Mani Carneiro e Taynah:



Aipim não é Macaxeira é um ensaio de bom gosto, um álbum que se equilibra bem entre a brasilidade de seu som e as influências de ritmos estrangeiros. É uma carta de intenções de um músico que ainda pode nos dar grandes alegrias. Talento não lhe falta. Talvez falte direção, mas o cara já provou que pode ser um bom timoneiro. É, com certeza, uma bela aposta para o futuro.

Cotação: 3

Prove do aipim:

http://www.mediafire.com/?tknfwlmljyy

Veja o clipe de "A Veneza"