segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Beijo derramado

Ney Matogrosso é muito macho. Que me desculpe o Romário, mas Ney é o cara! Ao contrário de muitos medrosos que fogem das inevitáveis comparações na hora da escolha de um repertório, ele as encara do alto da serenidade que o talento lhe deu. E mais, desafiando afinado o tempo e limites em seus quase e bem vividos 70 anos. Em Beijo Bandido(2009), o cara retoma a MPB mais classuda, depois do investimento em um disco mais rocker, o superestimado Inclassificáveis(2008). E o faz sob a égide da paixão. Derramado e sensível, seu último trabalho é, quase todo ele, uma ode ao amor alinhavada por uma seleção competente de canções que atravessam gerações.

Não resisti, depois de ouvir algumas vezes a Beijo Bandido, a resenhar o álbum a partir da comparação de interpretações do repertório eclético selecionado por Ney Matogrosso. Fui motivado por uma lista de composições que ganharam notoriedade nas vozes de outros ases da Música Popular Brasileira. A começar por “Tango para Tereza”, clássica dor de cotovelo assinada por Evaldo Gouveia e Jair Amorim, e que fez sucesso na voz da grande Ângela Maria. Ney realinha, melhora a canção, enxugando os excessos da Sapoti, carinhoso apelido da cantora, mas mantendo a dramaticidade da letra e melodia, num tom acima ao da maioria das interpretações do disco, aproximando-a de sua essência de cabaré.

Em vários momentos, Ney Matogrosso se arrisca a interpretações mais ousadas e acerta a mão, presenteando o ouvinte com momentos sublimes. Em alguns, o cantor suplanta a ele próprio. Supera-se, por exemplo, na versão mais cadenciada de "Segredo"(Herivelton Martins/Marino Pinto), valorizando a sensualidade desse outro grande clássico, em detrimento da malícia que impôs a mesma música presente no maravilhoso O Pescador de Pérolas(1987). Em outros, nivela sua performance aquelas consagradas, caso da arrepiante “Medo de Amar”, uma das obras-primas de Vinícius de Morais(aquela que diz, depois de uma irretocável declaração de amor, que “o ciúme é o perfume do amor”), eternizada com maestria, entre outras, por Nana Caymmi. Ele mantem a intensidade da baiana num arranjo que começa suave, no solo com um piano tocante, para crescer em direção a um samba canção doído como a letra.

Duas outras interpretações revelam um Ney soberano. Até porque, as boas canções não haviam ganho, até onde vai meu conhecimento, defesas a altura de sua força e beleza. Exemplo de “Bicho de Sete Cabeças II”(Geraldo Azevedo, Zé Ramalho e Renato Rocha). A versão mais conhecida é a de Geraldo Azevedo, que até empresta dignidade a sua criação. Mas, Ney Matogrosso, amparado em um arranjo que transforma a música num quase chorinho, agiganta a nervosa composição dando-lhe ainda mais ritmo e impacto. A outra é “Invento”, do ótimo Vitor Ramil, gaúcho talentoso que precisa ser descoberto pela maioria dos brasileiros, cantada em Beijo Bandido, título tirado da música, com uma ternura que reforça as aveludadas letra e poesia.

Existem momentos, contudo, em que Ney perde a contenda. Casos de "A Bela e a Fera"(Chico Buarque e Edu Lobo, cantada com extremo vigor, não alcançado por Ney, por Tim Maia, e de “Fascinação”. Mas, é difícil, diria quase impossível, superar a interpretação da fantástica Elis Regina, para a versão de Armando Louzada e Dante Marchetti daquele clássico norte-americano. Ainda que, o artista tenha chegado muito perto da pimentinha com sua interpretação para "As Aparência Enganam"(Tunai/Sérgio Natureza), no disco de 19 que leva o título da música. Mas, ainda assim, sua "Fascinação" também emociona, enriquecida pelo lindo arranjo e pela bela introdução ao piano.

Ney acrescenta, porém, pouco a outras canções, como “Nada por Mim”(Herbert Viana/Paula Toller)”, que contrasta com a sensualidade imposta por Marina Lima, “Mulher sem Razão” ( Cazuza, Bebel Gilberto e Dé Palmeira), que tem na voz de Adriana Calcanhoto uma versão mais sincera, e “A Distância”(Roberto/Erasmo Carlos), insuperável na voz do rei e que ganhou de Ney uma interpretação burocrática. De qualquer forma, mesmo sem estar muito inspirado nesses momentos, o ex-Secos e Molhados, fez um álbum maduro (impossível ser diferente, para quem demonstrou uma imensa coerência em sua carreira) e que pode figurar com honra em sua longeva discografia. Uma obra para ser ouvida em horas tranqüilas e que leva a assinatura firme de um cara com muito a ensinar a todos nós. Longa vida a Ney.

Cotação: 4

Aceite esse beijo bandido:

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