quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Ousadia desfraldada

Escolher um disco de um grupo como The Flaming Lips para resenhar deve, ou pelo menos deveria, provocar um certo temor em quem encara o desafio. Comigo foi assim. Me benzi e pedi a ajuda de santos e orixás do alto clero, aqueles mais bem cotados no olimpo das entidades, antes da árdua tarefa. Escarafunchar o som esquizofrênico e ousado desses caubóis de Oklahoma é assustador. Perder-se na dissonância das composições para se achar depois, aturdido, na proposta musical ensandecida dessa galera configura-se, porém, em um prazer maiúsculo, um duelo enriquecedor.

A nada surpreendente coragem de ousar se faz presente desfraldada no último trabalho do Flaming Lips, Embryonic(2009), um retorno a sonoridade tortuosa e altamente experimental de discos difíceis da banda como Zaireeka (1997), esse Ulisses do rock, e o assombroso Hit to Death In the Future Head (1992). Os caras têm cancha para fazer suas transcendentais experimentações. São 26 anos de estrada em que oscilam entre trabalhos digamos mais pops, no sentido mais estrito da palavra, e muitas loucuras. Quando resolvem enveredar por esta última linha, os norte-americanos o fazem sem dó nem piedade. E aí precisamos de disciplina e disposição para tentar entender as viagens que a banda empreende.

Embryonic é complexo como a dor da perda. Tipo do trabalho, perdão pelo chavão, ao qual você ama ou odeia. A intrincada sonoridade onde aos instrumentos parecem ricochetear cada um para um lado, atarantados como uma multidão quando ouve tiros, acompanha praticamente todas as músicas. Já em “Convinced on the Hex”, a primeirona, guitarra e baixo desencontrados com a melodia deixam o ouvinte perplexo, tentando costurar as sílabas musicais dessa espécie de rock do crioulo doido que seduz pela complexidade da equação. Enveredam aqui e na experiência seguinte, a ótima "The Sparrow Looks Up at the Machine" num gênero que poderíamos chamar de krautrock ou acidrock, como já tentaram segmentar alguns.

O melhor mesmo é não buscar encontrar qualquer segmentação no que o grupo faz. The Flaming Lips produz aqui um som um tanto inclassificável, onde você pesca, aqui e ali, algumas referências de gêneros ou bandas que se tornaram marcos na história musical da humanidade. É possível perceber ecos distantes de blues e lisergia em duas das melhores músicas do disco, “Your Bats” e “Worm Mountain”, essa última contando com a participação, dispensável até, do superestimado MGMT. Há traços de psicodelia, talvez o mais comum em todo o disco, e rock progressivo, da fase Ummagumma de Pink Floyd, e guitarras hard rock ledzepellinianas na decentíssima “See The Leaves”.

Há ainda música que parece música, como a bela e terna, apesar do nome, “Evil” e “Watching the Planets”, com a parceria da musa do eletro-rock Karen O (Yeah Yeah Yeahs), que participa em vários outros momentos do CD . E também algumas composições que não parecem seguir qualquer norte musical, avacalhando notas e estilhaçando instrumentos. São o caso da espacial “Virgo Self-Esteem Broadcast” e das chatíssimas "Scorpio Sword", uma esquálida viagem instrumental, e da incompreensível “The Impulse”, com overdose de vocoder, que poderiam muito bem estar fora do disco. É que, certa hora, entre as 18 músicas apresentadas e 79 músicas de pura experimentação, você acaba se cansando.

Wayne Coyne, vocalista e cidadão instigado da banda, quis fazer um impiedoso álbum duplo. Parece ter pretendido debulhar de uma só vez todas as suas fantasmagorias e esquisitices sonoras. Embryonic é, sem sombra de dúvida, um trabalho potente e de grande fôlego. Mas, recomendo, apenas para escutar nas horas mais vagas e descansadas. Não se assemelha a nada do que é feito hoje em dia, mas, quer saber, eu gostei muito. Porque, no fim de tudo, apesar dos pequenos deslizes, você tem a certeza de que participou de uma experiência fascinante e provocadora. Por isso, amigas e amigos, embarquem de peito aberto nessa viagem enriquecedora.

Cotação: 4

Encare a fera de frente:

http://depositfiles.com/pt/files/ntphzzp18