terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Terra que bode come, nada brolha

O senhor sequelado na porta daquele primeiro andar pintado de um vermelho esquisito. Os olhos voltados para a rua sem querer enxergar nada. Uma noite qualquer em Chaval, na divisa do Ceará com o Piauí. A noite em descompasso com o relógio, andando lerda, desafiando os sentidos. Um restaurante encrustrado na casa de interior pronto pra rescender os sabores mágicos do sertão. Tudo tão familiar e eu e meu irmão postados ali, com uma fome de titã rebuscando o passado, enlevados com o que víamos e ouvíamos.

A clientela misturada ao cotidiano da casa e seus habitantes, estes bem a vontade diante de tudo. O espaço deles, dominado desavergonhadamente. Nós dois ali, estrangeiros, curiosos com tamanha autenticidade e naturalidade da família de dona Fátima, a tia Fátima, dona da casa e de mãos de ouro. Pedimos o frugal, mas a tia ofereceu o especial: uma galinha caipira. "As partes mais humildezinhas", disse. A iguaria, feita com maestria, atiçou o paladar com seu sabor de alho e ervas sertanejas.

A farra do paladar só era interrompida com o senhor que, de quando em vez, era instigado a abandonar sua placidez para pescar, em câmera lenta, uma cerveja de dentro do freezer. Ele, que pouco falava, era um farol de bondade na sala com suas mesas arrumadas matematicamente e cobertas com toalhas coloridas. E ela, nossa tia boa de fogão, uma mulher que se incendiava com o verbo. Língua acesa. Várias histórias contadas, frases memoráveis, como "terra que bode come, nada ali brolha(brota, no dizer da senhorinha)". E a noite, feito criança, não se cansava de brincar com as horas.

Noite mágica essa, onde os sentidos, reféns de um tempo perdido que teimava em se perpetuar, fizeram uma grande festa. Fim de papo. E o resto é só memória e poesia.