sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

A lista equilibrada da Q

E vai mais uma lista dos dez melhores álbuns do ano. A Revista inglesa Q colocou no topo o bacanudo West Rider Pauper Lunatic Asylum, dos também britânicos Kasabian. Fugiram do lugar comum de boa parte das publicações que se renderam ao som do Animal Collective e seu incensado Merriweather Post Pavilion, que aqui ficou em um honroso quarto lugar. Outros hypes como The Horrors, com Primary Colours e Wild Beasts, com Two Dancers, citados pela maioria das revistas especializadas, ficaram respectivamente na 39ª e 41ª posições. A lista da Q é mais pop e equilibrada do que a maioria das que vi até agora e lembrou até, entre os dez mais, do medalhão U2, com o mediano No Line on The Horizont e da espevitada Lily Allen, que lançou o álbum It's Not Me, It's You. Veja abaixo todos os 50 escolhidos, do último ao primeiro, e compare com os seus preferidos.

50. Jarvis Cocker - Further Complications
49. Bob Dylan - Together Through Life
48. Ian Brown - My Way
47. Madness - The Liberty of Norton Folgate
46. Golden Silvers - True Romance
45. Conor Oberst and the Mystic Valley Band - Outer South
44. The View - Which Bitch?
43. Tinariwen - Imidiwan: Companions
42. Mariachi El Bronx - Mariachi El Bronx
41. Wild Beasts - Two Dancers
40. Cheryl Cole - 3 Words
39. The Horrors - Primary Colours
38. Richard Hawley - Truelove's Gutter
37. Fuck Buttons - Tarot Sport
36. Sonic Youth - The Eternal
35. Pearl Jam - Backspacer
34. White Lies - To Lose My Life...
33. Dirty Projectors - Bitte Orca
32. Paolo Nutini - Sunny Side Up
31. Biffy Clyro - Only Revolutions
30. La Roux - La Roux
29. Wilco - Wilco (The Album)
28. Bruce Springsteen - Working on a Dream
27. The Dead Weather - Horehound
26. Bat for Lashes - Two Suns
25. Noah and the Whale - The First Days of Spring
24. Mos Def - The Ecstatic
23. The Prodigy - Invaders Must Die
22. The Low Anthem - Oh My God, Charlie Darwin
21. Jamie T - Kings & Queens
20. Fever Ray - Fever Ray
19. Monsters of Folk - Monsters of Folk
18. Mika - The Boy Who Knew Too Much
17. Green Day - 21st Century Breakdown
16. Empire of the Sun - Walking on a Dream
15. Dizzee Rascal - Tongue N' Cheek
14. Devendra Banhart - What Will We Be
13. Grizzly Bear - Veckatimest
12. Jack Penate - Everything is New
11. Doves - Kingdom of Rust
10. Phoenix - Wolfgang Amadeus Phoenix
09. U2 - No Line on the Horizon
08. Lily Allen - It's Not Me, It's You
07. Muse - The Resistance
06. Arctic Monkeys - Humbug
05. Manic Street Preachers - Journal for Plague Lovers
04. Animal Collective - Merriweather Post Pavilion
03. Yeah Yeah Yeahs - It's Blitz!
02. Florence and the Machine - Lungs
01. Kasabian - West Rider Pauper Lunatic Asylum

Assista ao ótimo Vlad The Impaler, música de trabalho de West Rider Lunatic Asylum:

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Nas asas de Radiohead

Pescando na internet, fisguei um álbum extemporâneo de uma dessas bandas sobre a qual muito pouco se sabe. Gosto de mistérios, da busca quase arqueológica diante do objeto desconhecido. Tentei uma pesquisa, cansativa, na rede mundial, mas esta pouco me ofereceu, deixando-me com uma ponta de decepção, como um detetive rendido pela falta de evidências no cenário do crime. Descobri pequenos rastros, informações esparsas. A banda, Monotalk, foi formada em Tel Aviv, Israel, e Fix me Up (2009) é o álbum de estréia, esse mesmo que me prendeu a atenção pelo lirismo e melodias cativantes. Para mim, um cândido achado que insistiu em se fazer presente na minha vitrolinha por vários dias seguidos.

Não pensem, porém, que Fix me Up seja a oitava maravilha do mundo, mas tem um encanto nato, como um inesperado e inventivo gol, e uma melancolia que me pegou de jeito. Talvez pela surpresa de Monotalk ter vindo de Israel. Talvez pelo fato de lembrar minha queridíssima Radiohead da época de Pablo Honey(1993) e The Bends(1995), daquele período em que Thom Yorke era mais pé no chão. Talvez porque esse trio israelita (Israel Erez, no vocal, guitarra e teclado, Yoav Alyagon, na guitarra e bateria, e Roy Regev, guitarra e samplers) tenha se doado tão inteiramente numa viagem musical poética sem grandes pretensões. Talvez também porque essa época natalina deixe a gente com o coração danado de mole, besta besta. O fato é que gostei.

Monotalk faz o mais puro indie rock. Desses carregados de atmosfera, sem ser porém estupefaciente ou chato, e até mesmo com ecos do pop. Aquela carga de melancolia impressa pelo Radiohead, com bateria comportada, guitarras pontuais e intervenções eletrônicas econômicas estão presentes em boa parte das músicas de Fix me Up. É o caso de “Full of Nothing”, o vocal meloso, pendendo para o dramático do afinado Israel Erez, acompanha a beleza da canção, que se ampara ainda em um bonito arranjo de cordas de violinos programado no teclado. A mesma doce melancolia dá o tom das também radioheadianas “I’ve Missing the Train to Nowhere”, de melodia cortante, e “Sometimes”, talvez a balada que mais lembre o referenciado grupo britânico.

Em alguns momentos, o trio foge da linha melódica do Radiohead e traça uma sonoridade mais pop e pessoal. “Absurd”, escolhido como primeira música de trabalho, é cool, com uma leveza e sinuosidade que aproxima a banda daquilo que fez, na década de 80, o ótimo Style Council. Mais roqueiras e animadinhas, “Check Your Pulse” e “The Bullfighter” aceleram nas batidas da bateria e na distorção das guitarras, apontando talvez um caminho futuro para essa galera de Israel. A honestidade e inspiração das canções de Fix me Up, além da boa voz de Isrtael Erez credenciam o grupo, acredito, para seguir em frente e se tornar uma referência mais clara e constante nos googles da vida. No mais, o álbum me deixou uma bela impressão, um gostinho de quero mais. Experimente esse som.

Cotação: 4

Aproveite o espírito natalino:

www.mediafire.com/?tjwf1eidzi5

Ouça e veja “Full of Nothing” na interpretação visual de Bulbul Azrak:

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Os 16 mais de Zeca Camargo

E Zeca Camargo, o garoto do Fantástico, apresentou também sua lista dos melhores de 2009. Exagerado, ele não ficou nos dez álbuns. Enfileirou de cara 16 discos lançados este ano, incluindo compilações. E deu um aviso aos navegantes: ali nada é hierárquico ou definitivo. “A lista não está em nenhuma ordem de preferência. Os títulos selecionados não têm a menor pretensão de representar “os grandes discos de 2009” – é uma lista idiossincrática e que visa primeiro agradar a este que vos escreve.”, escreveu no texto introdutório. Colorida e festiva, a seleção é a cara de um Zeca sem fronteiras, que gosta da música do mundo e tem um pé em sons mais agitados, quer seja com batuque africanos ou guitarras mais pops. Esse é o mundo musical miscigenado do jornalista e também crítico musical que elegeu o disco The Boy Who Knew too Much, de Mika, um libanês radicado em Londres (o cara da foto), como o melhor do ano. Editei abaixo as justificativas de Zeca Camargo para as suas escolhas. Para quem quiser ler os textos do cara na íntegra é só ir em: http://colunas.g1.com.br/zecacamargo/2009/12/14/os-15-1-melhores-discos-que-voce-nao-ouviu-em-2009/

Segue a lista:

Maki Nomia e Fernanda Takai, Maki Takai no Jetleg – Uma parte Pato Fu, uma parte Pizzicato 5 – e uma boa dose de delírio!

Florence and The Machine, Lungs – Florence é a melhor voz de 2009, e suas composições são tão poderosas quanto suas cordas vocais.

The XX, The XX – Da estranheza de “Islands” à batida pseudo-dançante de “Basic space”, passando pela levada sutil e irresistível de “Night time”, o disco do XX é um verdadeiro tobogã.

Raks raks raks – 27 golden garage psych nuggets from the iranian 60’s scene (Vários)– Aqui você encontra 27 “pérolas” do pop iraniano dos anos 60 (esbarrando nos 70).

Cazumbi – Garage rock surf and psych howlers from the vaults of african colonies (Vários) –Como pude chegar até aqui na minha vida sem ter sido apresentado a “Aida”, “Murder by contract” ou “Manga madura”? Nem imagino…

Girls, Album – Girls são dois caras da Califórnia que aparecem justamente quando eu achava que o rock pop americano não tinha mais nada de bom para oferecer.

The Hidden Cameras, Origin: Orphan – Da faixa “In the na” em diante, você vai encontrar alguns dos arranjos vocais mais surpreendentes dos últimos tempos.

Golden Silvers, True Romance – Sempre tenho a esperança de que alguém, todo ano, vai reinventar o pop. Em 2009, os ingleses do Golden Silver foram os que chegaram mais perto dessa façanha.

The Very Best, Warm Heart of Africa – Para os que só descobriram que existia um país chamado Malauí quando Madonna foi lá adotar mais um filho, aqui vai uma introdução, digamos, mais interessante.

Micachu, Jewellry – O objetivo deles é pegar seus ouvidos e dar um passeio sem GPS. Cada faixa desse álbum de estréia tem pelo menos dois ou três desvios de percurso – e quem disso que você não vai junto?

Black Rio 2 – original samba soul 1968-1984 (Vários) – O que mais me deixa chateado é que a gente tem que fuçar numa biboca em Londres para achar uma coisa dessas que poderia muito bem ter sido compilada e lançada por aqui. Minha boca ainda está aberta, desde a primeira vez que ouvi essa compilação.

Natalia Lafourcade, Hu Hu Hu – Com um pé na experimentação e outro no pop, ela oferece (mais uma vez), músicas tão deliciosas como “No viniste”, a própria faixa-título (que mais parece uma oração), ou “Hora de compartir”.

Fuck Buttons, Street Horrrsing –A não ser pela segunda música, “Ribs out” (de inspiração… selvagem!), nenhuma faixa tem menos de sete minutos – e todas valem cada segundo tocado!

The Sound of Wonder (Vários) – Impossível aqui descrever rapidamente a mistura imprevisível de estilos e ritmos que a gente encontra em cada faixa.

The Big Pink, A Brief History of Love – O som dos ingleses do Big Pink é monumental – e tão irresistível que, só para dar um exemplo, eu desafio você a escutar o modesto “hit” “Too Young to love” e não querer dar “replay” no seu iPod!

Mika, The Boy Who Knew too Much – O mínimo que eu posso fazer para este que é um dos melhores exemplos de elaboração pop (sem falar nos arranjos que são os melhores de 2009), é escolhê-lo como disco do ano!

Veja clipe de "We are Golden" com Mika:

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Baianos envenenados

Pode pensar em qualquer tipo de remédio, quer sejam pílulas, ungüentos, xaropes, folhinhas rezadeiras, infusões ou reza braba. Difícil querer curar assim, na base do medicamento ou de misticismo, as dores de amor ou aquela paixão que insiste em deixar o pobre atingido tonto e febril. Essa lição básica está presente na música “Frascos Comprimidos Compressas”, que é também o nome singular do segundo disco da banda Ronei Jorge e os Ladrões de Bicicleta. Esse sentimento tão essencial, banhado aqui em dendê e pimenta forte, é, na verdade, a tônica de um álbum provocador, autoral, que marca o retorno desses baianos que não abrem mão da inventividade. Os Ladrões de Bicicleta se inspiram nas mazelas e delícias do amor para voltar a exercitar sua sonoridade de assinatura própria, calcada um tanto no rock dos anos 70 e um muito no samba e na poesia torta.

Quando lançaram o primeiro CD em 2005, Ronei Jorge e os Ladrões de Bicicleta apresentaram sua mistura de samba e rock sem que esta pudesse ser classificada exatamente como samba rock, aquele gênero de swing irresistível que tem como representantes ídolos como Jorge Ben e Bebeto. Um belo trabalho que instigou a crítica e revelou um quarteto que curtia os sambinhas da antiga e a MPB evolucionista praticada por um Caetano Veloso e um Tom Zé tropicalistas, da fase em que estavam mais ligados em experimentações e ao rock. Essas referências marcaram a musicalidade da banda, o que pode ser sentido de forma mais clara nesse trabalho, forjado cinco anos depois da estréia. Uma gestação lenta, baiana (desculpe o estereótipo), que originou um álbum maduro, difícil de classificar e que para ouvidos menos treinados pode até soar estranho.

O primeiro impulso é querer definir Frascos Comprimidos Compressas como um disco de samba. Esse gênero, porém, é a base para que Ronei(voz e violão), Edinho(guitarra e teclados), Pedrão(bateria) e Sérgio(baixo) injetem suas influências roqueiras, destiladas quase sempre em guitarras distorcidas e venenosas. Caso da ótima “Você Sabe dessas Coisas (Nega)”, onde sambinha e distorção estão a serviço de uma melodia sinuosa, com ar de desalento, mas que tem, por mais contraditório que pareça, uma pegada forte. A sincopada “Quem Vem Lá” utiliza-se da guitarra delineadora e abusada para mais uma apropriação criativa do samba, numa cadência e linguagem que tem a cara da banda. Em ritmo ainda mais cadenciado, e com pinceladas de jazz, “A Respeito do Sono” é balada matadora com refrão memorável. Sem dúvida, uma das mais instigantes do álbum.

Esse samba esquentado pelas guitarras vira em Frascos Comprimidos Compressas um amálgama cheio de personalidade, um som autoral, hipnótico. As melodias arrastadas, e que te arrastam junto, as mudanças de andamento das canções, os climas viajandões criados por essa sonoridade inventiva diferenciam Ronei Jorge e os Ladrões de Bicicleta da maioria dos grupos brasileiros. Até porque também os músicos não fazem muitas concessões. A modernidade que emprestam a músicas como a psicodélica “Azucrim”, uma das melhores do álbum, e a climática e também marcante “Vidinha”(veja clipe no final da postagem) pode desagradar a muita gente. Mas é um caminho estético de quem realmente maturou o som e sabe o que quer. Irrequietos, esses baianos cantam para quem prefere fugir do lugar comum.

A identidade musical do grupo é construída ainda em cima de uma poética objetiva e que tem no amor a grande inspiração. Em “Aquela Dança”, o papo é reto, mas sem perder a ternura: “O seu caminho é o carnaval/O meu não é um só”. Em “Tanto fez Tanto faz”, o letrista assume o simulacro das relações: “Se eu te entendo demais, tanto fez, tanto faz/ Palavras não seguem mesmo linhas retas”. Precisa, a poesia em “Ó Você Dizendo” é declaração amorosa criativa: “Parece que é prece, que é só ilusão/Parece que o coração vai parar/é prova de que preciso te amar/ Vou treinar esse mágica de vez”. Bom saber que essa turma tem uma preocupação, longe de ser esnobe, com estilo e linguagem. Inteligência nunca faz mal e Ronei Jorge prova com seu novo trabalho uma coerência incomum. Coisa de quem vê o mundo com generosidade, sem medo de se expor ou dar de cara no muro. Esses caras podem até se espatifar lá na frente com sua coragem, mas que vão deixar rastros, isso já deixaram.

Cotação: 5

Sinta os baianos em erupção, no control c control v:

http://www.mediafire.com/?vt2kytmj2tj

Assista o clipe de “Vidinha”:

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Os 10 melhores da NME

As listas com os melhores discos do ano das principais revistas especializadas em músicas começam a surgir na internet. Eu, como um fã inveterado dessas discutíveis seleções, sempre as persigo. E vou reproduzi-las aqui no blog em pequenas doses, pílulas para aqueles que gostam de música e polêmica. A primeira delas é da revista britânica New Music Express, mais conhecida pela sigla NME. Ficaram de fora do top ten da publicação bandas badaladas e cultuadas como Franz Ferdinand, Sonic Youth, Arctic Monkeys, Wilco, Green Day, Muse, Echo and The Bunnymen e até os peso pesados que se reuniram para formar a aguardada Them Croocked Vultures. A banda inglesa The Horrors ( a banda da foto neste parágrafo), com seu Primary Colors(2009) lidera a lista. Para conhecer os 50 melhores acesse: http://www.nme.com/list/50-best-albums-of-2009/159978/

1.– The Horrors - Primary Colour
2.– The XX – The XX
3.– Yeah, Yeah, Yeahs – It’s a Blitz
4.– Wild Beasts – Two Dancers
5.– Animal Colective – Merriweather Post Pavilion
6.– Grizzly Bear – Veckatimest
7.– The Big Pink – A Brief Histoty of Love
8.– Fuck Buttons – Tarot Sports
9.– Fever Ray – Fever Ray
10.– Jamie T – Kings & Queens

Assista ao clipe de “Who Can Say”, do The Horrors:

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Cabeça é pra isso mesmo

Abri o sorriso diante da tela luzidia do computador escangalhado. Com puta satisfação e enorme curiosidade vi circulando livre pela internet dois álbuns, o segundo de bandas autorais que me impressionaram num passado recente e que agora voltaram a dar o ar da graça em bacanas registros fonográficos. Uma paulista, de nome arcaico, Numismata (essa que taí na foto acima), que chega com Chorume (2009). A outra baiana, de nome extenso e engraçado, Ronei Jorge e os Ladrões de Bicicleta, despejando seu Frascos Comprimidos Compressas (2009). A boa notícia é que esses grupos, que causaram algum frisson no meio da galera mais antenada na época da estréia, retornaram com o mesmo pique criativo, experimentando seu som próprio e agudo, exemplar raro de quem faz rock e samba com o cérebro em ebulição.

Vou começar a fazer a festa falando do Numismata (na próxima postagem, entro cauteloso no universo alucinado dos baianos do Ronei Jorge), sexteto paulista cultuado desde que colocou no mercado alternativo o excelente Brazilians on the Moon (2003). Naquele ano, os caras foram incensados pela crítica especializada. E com justiça. O disco era um mergulho corajoso em nossas raízes sambísticas e emepebísticas, mas com injeções renovadoras de rock, psicodelia e afins. O que é melhor, com conhecimento de causa e boa levada instrumental dos músicos. Em Chorume, seis anos depois, a galera de Sampa amadureceu ainda mais essa linha musical. A bem definida opção estética, que mistura pesquisa e experimentos, aparece agora vestida de gala, num trabalho onde produção esmerada e refinamento andam de mãos dadas.

A psicodelia de “Todo Céu e Essas Pequenas Coisas”, que abre Chorume, mostra o cuidado do Numismata com os arranjos e instrumentos, que se repete em cada uma das canções do disco, nessa música de melodia forte e cinematográfica. A letra escancara com poesia e respeito uma São Paulo mundana, onde “cai a chuva fina misturada ao odor de urina velha e gasolina”. Dentro da proposta de casamento, não assumida pelo grupo, do rock, samba e MPB há ainda pérolas como “Prejuízo”, com a participação luxuosa do grande Luiz Melodia, que empresta vitalidade a essa composição que parece ter saído da própria lavra do negro gato, e que conta, reparem, com a guitarra solta e vibrante de André Vilela. Grande música, assim como a sacana “A Vida como Ela é”, uma marchinha carnavalesca apimentanda ainda mais pelo instrumental rocker do grupo e a alegria contagiante de Maria Alcina, outra fina participação.

Ver o respeito e a participação de ícones da MPB como Maria Alcina e Luiz Melodia no trabalho do Numismata só credibiliza ainda mais o som de uma banda que faz referências claras ao passado em sua música, mas mantém uma postura aguerrida ao acrescentar sem medo matrizes e influências estrangeiras. Ao mesmo tempo em que mostra reverência ao samba tradicional, como na bonita “Anhanguera”, ou brinca com competência de fazer valsa, com direito a orquestração de violinos, como na doce “A Passos Largos”, rende-se ao rock e a psicodelia, como nas bacanas “Tanta Saudade” e “Naif”, cuja intensa melodia lembra os também referenciais Los Hermanos em seus melhores momentos. E beliscam até o jazz, exemplo da ótima “Vira Latas”, onde o vocalista e tecladista Piero Damiani, em dueto com o ótimo Carlos Fernando (ex-Nouvelle Cuisine), uma das melhores vozes masculinas da MPB, arrisca o francês.

Essa permissividade criativa que junta rock, samba e MPB, acha-se afiadíssima em Chorume. E o mais legal ainda é perceber que a essa experiência bem realizada é acrescentada letras bem escritas e bem desenhadas. Bons e escaldados poetas do grupo revelam sua matiz urbana e sensível. Gente capaz de citar paulistas ilustres, reveladores da alma de São Paulo e seus cidadãos, como os compositores Geraldo Filme e Paulo Vanzolini, na pungente “Todo Céu e Essas Pequenas Coisas”. Capaz de versos acres como “Não vou mais me curvar ante a vastidão do mundo/não vou mais aceitar o beijo vil da morte” ou de serem diretos como na coalhada de antíteses “O Inferno e um Pouco Mais”, na qual provocam: “Eu não canto mais vitórias para não ser derrotado/ Eu não penso no futuro pra não virar passado/ Não faço o bem pra não sofrer o mal/ Não pulo mais o carnaval”. Sem dúvida, um dos grandes discos do ano. Que seja um sinal de que 2010 possa ser muuuito melhor.

P.S.: Numismata é Piero Damiani (voz e teclado), Adalberto Rabelo (guitarra e voz de apoio), André Vilela (guitarra e voz de apoio), Carlos H. (baixo), Carlos Russo (voz de apoio e percussão) e Felipe Veiga (bateria e percussão). Ah, para quem não sabe e tem aquela preguiça de correr até um dicionário e enriquecer o vocabulário, Numismata é o especialista na numismática, ciência que estuda e decifra moedas e medalhas, revelando origens, detalhes e material usado. Arqueólogos do passado e de pequenos tesouros. É, nossos amigos paulistas bem que podem ser enquadrados nessa categoria.

Cotação: 5

Todo o chorume do Numismata:

http://rapidshare.com/files/308718377/numismata_chorume.rar

Veja a engraçada "Das Tripas, Coração" com o Numismata:

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Faltou gás

Existe uma saudável compulsão do ser humano em buscar seu lugar ao sol. No universo da música, essa busca eleva-se ao quadrado e se dá no meio de uma competição pra lá de acirrada. Mas, entre as zilhares de bandas de rock que povoam o mundo, pouquíssimas conseguem a consagração, a glória de serem reconhecidas e adoradas por inumeráveis e alucinados fãs. Algumas delas fazem sucesso apenas no seu próprio terreiro. Outras, com a ajuda do santo forte, vão além de seus quintais e ganham as prateleiras das lojas de CDs em todo o planeta. E tem aquelas que quase chegam lá e, para ganhar o carinho do ouvinte, parecem ser capazes de vender a própria alma ao diabo. Esse é o caso dos escoceses do Biffy Clyro, que acabam de lançar o super comercial e equivocado, menos na linda capa, Only Revolutions (2009).

Pouca gente ouviu falar de Biffy Clyro. Conheci a banda por meio do interessante Infinity Land(2004), o terceiro da carreira, um disco ruidoso e que me causou boa impressão pelas melodias bem costuradas em meio ao peso rocker produzido pelo trio. O grupo passou a ser considerado “emergente” depois do relativo sucesso do álbum Puzzle(2007), que trilhava um caminho pop, um pouco mais a direita do que faziam antes. Only Revolutions seria então a prova dos noves, a afirmação da banda de que ela poderia se firmar de vez no mainstream. E o grupo capitaneado pelo vocalista Simon Neil seguiu nessa direção apostando numa produção mais acurada e com o auxílio do produtor Garth Richardson, que ajudou a produzir trabalhos de supergrupos como o fenomenal Rage Against the Machine.

E até que o Biffy Clyro tenta mostrar algum diferencial com a excelente “The Captain”, música que abre espetacularmente a mais nova empreitada dos escoceses. Épica e com arranjos de cordas que chega a lembra a pungência do Muse – banda para quem, aliás, o grupo está abrindo os shows internacionais – essa canção é a senha para um produto tecnicamente azeitado. E Only Revolutions se resume a esse apuro. Mas até que a galera tenta acertar a mão em canções razoáveis, como a bipolar “That Golden Rule”, que alterna dinâmica hardcore com momentos chá de camomila. Ou em “Bubbles”, com marcante mudança de andamento, e a balada “Many of Horror”, de refrão mais ganchudo.

Contudo, essas tentativas de acertos só reforçam o sentimento de que o pique criativo fica restrito a espasmos. O grupo envereda por uma seqüência de melodias que não engatam e se perdem no meio de uma maquiagem sonora que forçam uma empatia com o ouvinte. E tudo começa então a soar um tanto superficial e repetitivo. E você logo pensa: eita, essa aí tá querendo o sucesso a todo custo. É o caso evidente de músicas sensaborosas como “Whorses”, com sua batida bateria marcial, e as contidas “Know your Quarry” e “God & Satan”, que parecem com tudo aquilo que as bandas pos-grunges tentaram fazer, sem sucesso, após a referência deixada por Kurt Cobain. Pode até ser que Biffy Clyro toque um dia na trilha sonora da saga Crepúsculo, mas que eles deveriam rever seu conceito de música e buscar o vigor do rock acelerado e mais descerebrado que faziam antigamente, ah bem que deveriam.

Cotação: 3

Sinta o tempero do Biffy:

http://www.megaupload.com/?d=C9G66P50

Ouça a bacanuda The Captain:

sábado, 5 de dezembro de 2009

Cozinhando o aipim

Poucas raízes têm uma relação tão significativa e profunda com o Brasil quanto a boa e velha mandioca. Ou aipim. Ou macaxeira. Nomes diferentes para um tubérculo que é a base da alimentação dos sábios índios brasileiros. Aqueles que foram “descobertos” pelo “descobridor” das terras tupiniquins. É alimento barato, substancioso e que inspira, por seu sabor neutro, deliciosas mestiçagens gastronômicas (que tal um Escondidinho – mistura de mandioca, carne de sol e queijo -, aí?). O título do primeiro álbum do pernambucano Fernando S., Aipim não é Macaxeira(2009), tem esse sabor radical de um país mestiço, que sorve influências mas carrega inapelavelmente em sua essência a buliçosa alma verdeamarela.

Aipim não é Macaxeira, que me chamou atenção de cara pelo bem humorado título, é obra de arquitetura coletiva. Tem aqui trechos de trilhas de cinema, parcerias gestadas como um filho, lentamente, o baixo de um colega de batalha, a voz terna de uma amiga de guerra, o violão gravado ao vivo. O álbum, segundo Fernando S., foi parido em dois anos, no compasso do tempo de cada um dos participantes do trabalho. O resultado é complexo e multifacetado, como o Brasil, com estilhaços de rock, MPB e música eletrônica. Um caldeirão ao qual os irrequietos músicos pernambucanos, dos mais criativos do país, já estão acostumados.

O disco de Fernando S. é democraticamente dividido. Meio somente instrumental. Meio contando com as vozes de amigos do Rio de Janeiro e Recife. É também um tanto desigual, até porque se oferece generoso a interferência, melhor seria dizer cumplicidade, de tanta gente. O CD é orgânico nas faixas instrumentais, onde pode ser percebido, em vários momentos, referências ao rock dos anos 60 e 70 no som do autor. Na bela “Fenix”, por exemplo, que abre o trabalho, o cara utiliza-se de um órgão Hammond e de barulhinhos eletrônicos para criar uma atmosfera viajante, típica do rock progressivo, quebrada pela entrada rascante da guitarra.

As boas idéias sonoras e as melodias consistentes perpassam as músicas exclusivamente instrumentais. O piano e a guitarra de Fernando se dizem presentes lindamente na quase trip hop, a melancólica “A Falta de Estrela”, uma das melhores do álbum. Nessa direção temos ainda a também viajandona “Ao Redor”, com muito eco de baterias e utilização de efeitos bem característicos daquele outonal gênero musical. Tem cara de cinema com sua evocação de paisagens etéreas e carregadas. Mais rocker e interesante é “Salvatore”, com suas cordas pesadas substituídas, depois que cai a ficha do músico (“Caraca, viajei”, diz o cara no meio da composição), por uma guitarra mais melodiosa, bem anos 70, levada com competência pelo agregador do disco.

Se o dono do projeto acerta em quase todas as faixas instrumentais, o mesmo não se pode dizer daquelas em que pediu a força de amigos letristas. Músicas chatinhas como a jovemguardista “Vestido Azul”, com a participação da cantora Mary Gaspari que não ajuda com sua vozinha infantil a levantar a canção, e “Caminhante Dub”, com Bruno Muniz, do grupo Laranja Dub, no vocal desapontam. Em compensação temos o divertido rock brega “Ventilador”, com a voz personalíssima de Carlos Posada, da banda Bárbara e os Perversos, e, principalmente, “Naianga”. Gravada ao vivo, essa canção é interpretada com alma por um surpreendente Mani Carneiro (o cara da fotografia ai ao lado), cantor afinado e timbre marcante. Tocante, é MPB de rara estirpe, com letra e melodia de arrepiar, uma das mais lindas que ouvi no gênero esse ano.

Ouça "Naianga" com Mani Carneiro e Taynah:



Aipim não é Macaxeira é um ensaio de bom gosto, um álbum que se equilibra bem entre a brasilidade de seu som e as influências de ritmos estrangeiros. É uma carta de intenções de um músico que ainda pode nos dar grandes alegrias. Talento não lhe falta. Talvez falte direção, mas o cara já provou que pode ser um bom timoneiro. É, com certeza, uma bela aposta para o futuro.

Cotação: 3

Prove do aipim:

http://www.mediafire.com/?tknfwlmljyy

Veja o clipe de "A Veneza"

domingo, 29 de novembro de 2009

Australianos surpreendentes

A terra dos cangurus de vez em quando nos surpreende com sua música. Do jurássico AC/DC, que pousou no Brasil neste fim de ano com seu metal baba, a The Vines, uma das boas bandas surgidas nessa década, passando por Midnight Oil, Wolfmother e Hoodoo Gurus, entre outras mais conhecidas, a moçada da Austrália bate a nossa porta com um sonzinho de qualidade que ultrapassa merecidamente as fronteiras da super ilha. O caso mais recente é de uma turma de Melbourne batizada The Temper Trap e que chamou atenção dos caçadores de novidades com Conditions(2009), álbum de estréia com bons achados e que tem no convincente senso pop e na voz em falsete de Dougy Mandagi seus maiores trunfos.

Há quem tenha classificado The Temper Trap como indie rock e até mesmo art-rock, mas acho que a galera australiana está mais para um indie pop, só para confundir um pouco mais a cabeça de quem adora uma segmentação. Mas, deixando esse tipo de definição de lado, o melhor mesmo é se ater a deliciosa busca do vocalista Dougy e de seus parceiros(o bom guitarrista Lorenzo Sttillito, o baixista Jonathon Aherne e o baterista Toby Dundas) por uma musicalidade objetiva que mescla popices a uma tendência glam, traduzida na intensidade da voz do líder da banda e nos arranjos bem trabalhados. E aqui tem os dedos e as mãos de Jim Abyss, produtor do trabalho e que já emprestou seu talento para discos de peixes grandes como Kasabian, Arctic Monkeys e Ladytron.

O lado pop se faz presente principalmente nas músicas mais dançantes e diretas, como “Fader”, uma das mais fracas do disco, com seu teclado datado, batida de bateria básica e corinho que lembram os anos 80. Feita pra tocar no rádio. E também na bacanuda “Rest”, com um refrão hipnótico e a interpretação irresistível, rasgada de Dougy, que dão ares de dance a essa poderosa canção. Rivaliza com “Science of Fear”(veja o clip abaixo), a mais rocker e com melodia inspirada do CD, candidata, entre as que ouvi, a uma das melhores e mais pegajosas canções do ano. Reparem no ótimo arranjo e na empolgante guitarra de Lorenzo. Uma prova inequívoca que esses meninos não estão para brincadeira.

Os australianos também sabem carregar no clima quando desaceleram. Perdem um pouco o pique em duas canções que tem seu forte nas mudanças de andamentos. Caso de “Down River”, com construção lenta e melodia mais arrastada, com um saxofone triste pontuando a canção, mas que ganham peso no refrão e no final com ajuda de bonito arranjo de cordas. A outra é “Love Lost”, que engana o espectador com seu teclado e palminhas no início, que sugerem uma sacode pista, mas acaba não saindo do lugar, apesar da guitarra e do gás que pega um pouco mais adiante. The Temper Trap volta a ganhar crédito na bela balada “Soldier On”, na qual sobressai a afinada voz de Dougy em tocante e preciosa composição.

Conditions é, enfim, uma dessas estréias realmente surpreendentes e que merecem a atenção daqueles que gostam de boa música. Ainda mais num ano em que o rock andou meio bambo das pernas. E também porque senti nesse início de carreira do grupo, o que é mais complicado, claros sinais de maturidade inventividade. O destemor em encarar o universo pop, tão difícil de ser conectado com talento pela maioria das bancas, e a voz marcante do vocalista já valem o investimento nos poucos mais de 40 minutos do álbum. E aí é esperar para ver se a galera de Melbourne confirma mais adiante as boas intenções. Recomendo. Cheio de esperança.

Cotação: 4

Ao ataque:

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Clip bacana da ótima Science Fear

domingo, 22 de novembro de 2009

A vez dos desacelerados

Eles não são chegados em barulho, microfonia, guitarras no talo ou baterias desesperadas. Andam em marcha lenta, buscando a economia de sons, tentando convencer todos de que o mundo é mais bonito se desaceleramos. Os especialistas já deram nome a essa “síndrome” na música: lo-fi, abreviação para Low Fidelity, ou baixa fidelidade. E o que era uma opção estética de trabalhar com gravação caseira, sem os recursos de estúdio, virou estilo, um tipo de música serena, minimalista e sem sobressaltos, que tem no indie rock da ótima Wilco, uma de suas melhores e mais conhecidas representantes. E essa é a tradução exata para a sonoridade da banda Real Estate que colocou no mercado o seu primeiro disco, que leva o nome do grupo, um exercício de delicadeza e sobriedade.

Real Estate(Selo Woodsist, Underwater Peoples, Half Machine, 2009), o álbum, abusa da guitarra acústica e cordas dedilhadas, da bateria repetitiva e hipnótica para espelhar cenas de um cotidiano sereno. O nome das músicas do CD já adiantam um pouco esse ritmo interno das canções que acabam refletindo-se também nas melodias. “Nadadores de Piscinas”, “Lago Negro”, “Rio Verde”, “Dias de Neve”, os títulos transportam o ouvinte para situações de plena calmaria e descanso. Orgânicas, as composições do disco de estréia desses garotos norte-americanos cheiram a primavera e dias de sol, seguindo a cartilha do folk, ou melhor seria dizer, nesse caso, tentando achar uma definição mais exata, neo-folk com pitadas de psicodelismo, no qual a melodia se sobrepõe ao aparato técnico e efeitos sonoros, criando sensações na alma de quase letargia. Tudo realmente muito delicado e sensível, bom de se ouvir em momentos relaxantes, um fundo musical para se contrapor a correria dos nosso dia-a-dia.

Dezenas de outras bandas atualmente caminham na mesma praia do Real Estate. São herdeiros privilegiados dos anos 60 e 70, décadas preciosas e pioneiras em que a arte de gente prá lá de talentosa, como Joni Mitchell, Joan Baez e Van Morrison, só para ficar nos básicos, enriqueceram o folk rock, incorporando elementos modernos ao gênero. Os novos se permitem misturar ainda mais referências, munidos ainda das invenções musicais que surgiram de lá para cá. E o casamento folk, pop e psicodelia é hoje um dos preferidos dessa turma. Nessa direção, a galera de New Jersey, cevada no Brooklin, e que tem a frente Matt Mondanille (mais conhecido como integrante da banda Ducktaills), possui um senso real de direção, um equilíbrio e clareza musicais que vão ajudar a banda a evoluir, a meu ver, para uma sonoridade mais consistente.

É essa serenidade e equilíbrio do debut que transparecem em melodias bem construídas e com ares nostálgicos, como “Beach Comb” e “Pool Swimmers”, com a utilização enxuta de violão e guitarra, fazendo a cama para composições objetivas e suaves. As vozes, tão lo-fi quanto as músicas, coabitam com a instrumentação minimalista nos arranjos extremamente simples, como se fossem apenas mais um outro instrumento qualquer. A pop “Green River”, uma das melhores do disco, reforçam esse folk latente do grupo, com seu pandeiro, violão animadinho e coro alegre, como se tivesse saída de outros tempos, de dias mais inocentes e esperançosos. Na mesma linha, a bela “Snow Days” é mais bem resolvida melodicamente, fechando muito bem o álbum.

A opção pelos arranjos e execução dos instrumentos minimalistas nos leva a ter a sensação de que as músicas se parecem uma com as outras. É preciso ouvir Real Estate com cuidado e paciência para perceber as diferenças. A impressão é de que o grupo, com esse primeiro trabalho, está ensaiando algo maior, que reverbere mais. É possível sentir inconsistência e fragilidade em algumas músicas como em “Suburban Dogs” ou em “Fake Blues”, que, de Blues realmente, não tem nada, mas há lampejos de criatividade e talento como nas canções citadas no parágrafo anterior. Um trabalho em tom menor e claramente despretensioso(não espere encontrá-lo na lista de revelações do ano), mais uma estréia com bons achados que me faz apostar num futuro promissor para essa galera. Vou pagar pra ver.

Cotação: 3

Confira o som dos suburbanos de Nova Jersei:

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quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Discurso do amor terno

O gostar é um mistério. Daqueles mais incríveis e que fazem da natureza humana um fantástico e insondável calabouço que ajuda a tornar todos nós, homo sapiens, seres admiráveis. Há alguns anos atrás conheci a música do paulista Kleber Albuquerque(esse cara aí do lado) e, não sei por que motivos, resolvi gostar dele. Despretensiosamente. Poucos amigos embarcaram na minha. Poucos críticos, que eu saiba, teceram loas a sua arte. Quase nenhuma Maria Bethânia quis gravar alguma música dele. Mas, eu, a cada disco lançado do artista, ia liquifazendo suas canções dentro de mim. E ele foi se abancando, ajeitando, quarto pronto, a caminha e o travesseirinho, na minha casa do gostar.

Kleber Albuquerque lançou recentemente seu sexto trabalho, de nome banal, Só o Amor Constrói (Gravadora SeteSóis, 2009). Confesso que havia uns dois anos não visitava as músicas desse querido, quase um velho amigo, compositor e cantor. Como que se ele tivesse tirado umas férias da minha casa do gostar. Mas, seu quartinho, pude perceber com carinho, estava esperando por ele. Ouvindo seu novo álbum fui entendendo as razões da minha simpatia e admiração particular pela sua obra. O artista mantinha, com sólida coerência, ainda que com vigor arrefecido, seu discurso amoroso, sua verve crítica e as melodias sentimentais daqueles que cantam colocando o coração pela boca.

Colocar o coração pela boca, se doar inteiro na poesia, como se cada canção fosse uma espécie de retiro espiritual. É, talvez fosse esse o motivo, me veio agora com o reencontro e com o peso das idéias amadurecidas, que me fez gostar de Kleber Albuquerque. Só o Amor Constrói não é o seu melhor trabalho. Discos mais intensos como 17.777.700(1997) e Para a Inveja dos Tristes(2000) continham músicas inspiradas que me faziam assobiá-las entre o cafezinho do fim de tarde e a montanha de serviço que me aguardava na noite que se avizinhava. Mas, o álbum traz de volta o velho Kleber de guerra, sincero como sempre e capaz, como sempre, de construir canções tão doces quanto incisivas.

O universo radical e emotivo que move Kleber Albuquerque vem à tona em pelo menos três músicas que figuram entre as melhores que já produziu. Esse radicalismo está na valorização da família e da ancestralidade refletida “nos olhos do pai de meu pai e nos olhos da mãe da primeira mãe” em “Geração”, de melodia triste e bonita. Está nas imagens da infância recuperadas em atos cotidianos descritos em “Calafrio”, que conta com a participação de Renato Braz, uma das melhores vozes masculinas da MPB atualmente. As notas vermelhas no boletim, o prazer de brincar no quintal, imagens que navegam numa sonoridade que lembra a telúrica poética musical do Clube de Esquina de Milton Nascimento e seus parceiros mineiros.

O terceiro achado de Kleber Albuquerque é “Por um Triz”, na qual se vislumbra uma velha prática do artista, que é a de explorar com propriedade a riqueza melódica e vocabular de nossa língua mátria. Junta uma canção de melodia cativante, beirando a melancolia, a uma letra de viés concretista. Bom poeta, nos prende quando canta o lamento daquele que constata que “o triste é que pra ser feliz foi por um triz”. Todas as músicas, com arranjos caprichados, no qual se sobrassaem um bandolim e uma sanfona arrepiantes, ficaram a cargo da excelente Miniorkestra de Polkapunk (André Bedurê, Estevan Sinkovitz, Gustavo Souza, Paulo Souza), que dividem a assinatura, com muito justiça, deste Só o Amor Constrói.

A coerência de Kleber Albuquerque está ainda nas suas criações pops, que tentam envolver o ouvinte com uma temática leve, sem perder a inteligência jamais, e que revelam o lado mais lúdico do artista. É o caso de “Só o amor Constrói”, onde cita Che Guevara em meio a uma levada brega, com seu típico tecladinho de churrascaria. Chega mais perto do radiofônico na pegajosa “Teve”(em parceria com Zeca Baleiro), uma crítica ferina a TV e seus apelos comerciais em ritmo de reggae. Mas acerta mão mesmo, nessa busca do equilíbrio entre o pop e o definitivo, em "Logradouro", com melodia intensa e refrão delicioso: “Você verá, eu vou ser feliz de dar dó/ Vou rir até desaprumar as parabólicas”.

No mais há derrapadas, como sempre, a exemplo do rockabilly “Sete Faces”(yeah, o rock faz parte da cartilha musical do compositor) e da versão acelerada, na onda do ska, para “Esquadros”, de Adriana Calcanhoto. Nada porém que afete essa minha inabalável fé na ternura que escorre pelas linhas e entrelinhas das canções de Kleber Albuquerque. Muita gente pode achá-lo chato e meloso. E até dizer que ele tem uma vozinha lá não muito convidativa (e aí, até concordo). Mas, esse mistério do gostar hoje em mim, pelo menos no caso desse artista de vozinha pouca, está bem resolvido. É na sinceridade desse Só o Amor Constrói que quero me espelhar. Ouça o disco. Ame-o ou deixe-o, mas se permita.

Cotação: 4

O elo para esse disco amoroso:

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sábado, 14 de novembro de 2009

Saudade do Strokes

Quando minha memória pousa no já quase longínquo ano de 2001, ela é invadida pela imagem de um puta álbum que marcou época. Is This It desembarcou no planeta arrasando quarteirão, embasbacando a crítica e tomando de assalto o cérebro da moçada cheia de expectativa com relação a música que poderia surgir com o novo século. Quem me apresentou esse grande Strokes foi um sobrinho, de ouvido esperto, que tem o saudável vício do rock and roll correndo forte no sangue. A banda novaiorquina nunca faria nada tão bom. Depois dele vieram o bacana Room on Fire(2003) e o bem mais ou menos First Impressions of Earth (2005). Daí a compreensível expectativa, quatro anos depois do último trabalho, em torno do recém lançado disco solo do vocalista Julian Casablancas.

Mas, a meu ver, não é com o primeiro álbum de Casablancas que vamos matar saudades dessa que foi uma das bandas mais legais de rock que surgiram nesta década. É claro que os fãs do grupo esperavam do vocalista um revival das canções pegajosas e vibrantes que ele ajudou a criar. Contudo, Phrazes for the Young(2009) é uma investida musical acabrunhante do carinha e não apenas por se distanciar em sua proposta dos Strokes. A sensação é de um disco desigual, sem norte, uma tentativa vã de Casablancas de criar uma identidade musical própria. Mas o que ficou em mim foi um gosto azedo na boca e a expectativa, reforçada agora, da propalada volta da saudosa banda com um novo disco para 2010, desses que deixem, desculpe a utopia, Is This It no chinelo.

Casablancas parece ter querido apostar em Phrazes for the Young num Synth pop com ares oitentistas. Quem ouve a pouca inspirada “Glass”, uma baladinha em que o teclado insistente e sacal torna a música cansativa, e a pop e descartável “11th Dimension”, até toma um susto. Afinal, o vocalista e compositor tem muito mais poder de fogo do que o mostrado nessas duas bobagens. Mas, há vida inteligente no álbum, principalmente quando a guitarra resolve dar um chega pra lá na tecladeira e toma conta da situação. “Out of the Blue”, a melhor e o que há de mais próximo de Strokes(olha a choradeira de novo...) no disco, é canção que pega de jeito o ouvinte com sua batida seca e hipnótica de bateria e a guitarra pontuando a melodia. Inspirada e animadinha de toda.

A guitarra manda muito bem também na bonita “Tourist” e naquela que considero a música mais emblemática do trabalho, “River of Breaklights”, os outros dois lampejos criativos do trabalho. A primeira tem um solo de guitarra marcante, arranjo inteligente e uma cadenciada e interessante melodia. Barulhenta e inquieta, a segunda, por sua vez, tem uma sonoridade um pouco estranha, com direito a teclado atonal no meio de toda aquela intensidade imposta por Casablancas. Mas, a estranheza é realinhada na hora que entra o cativante refrão. E aqui, vemos a luz própria, aquela que ele quis acender sem muita objetividade, do compositor. Aqui, ele deu a deixa de que pode ousar. Mas, esse vigor e ousadia infelizmente não se repetem em boa parte das composições.

Pelos insights, Phrazes for the Young não é um disco de se jogar fora. Mas, não corresponde a expectativa gerada por um compositor que, afinal, demorou para se mostrar em um trabalho solo. Julian Casablancas fica devendo um trabalho verdadeiramente consistente para os fãs que ele, e a culpa é toda dele e seus parceiros de Strokes, acostumou mal. E, no fundo, a gente sabe que essa álbum, mais cedo ou mais tarde, virá.

Cotação: 3

Control C control V para Casablancas:

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segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Beijo derramado

Ney Matogrosso é muito macho. Que me desculpe o Romário, mas Ney é o cara! Ao contrário de muitos medrosos que fogem das inevitáveis comparações na hora da escolha de um repertório, ele as encara do alto da serenidade que o talento lhe deu. E mais, desafiando afinado o tempo e limites em seus quase e bem vividos 70 anos. Em Beijo Bandido(2009), o cara retoma a MPB mais classuda, depois do investimento em um disco mais rocker, o superestimado Inclassificáveis(2008). E o faz sob a égide da paixão. Derramado e sensível, seu último trabalho é, quase todo ele, uma ode ao amor alinhavada por uma seleção competente de canções que atravessam gerações.

Não resisti, depois de ouvir algumas vezes a Beijo Bandido, a resenhar o álbum a partir da comparação de interpretações do repertório eclético selecionado por Ney Matogrosso. Fui motivado por uma lista de composições que ganharam notoriedade nas vozes de outros ases da Música Popular Brasileira. A começar por “Tango para Tereza”, clássica dor de cotovelo assinada por Evaldo Gouveia e Jair Amorim, e que fez sucesso na voz da grande Ângela Maria. Ney realinha, melhora a canção, enxugando os excessos da Sapoti, carinhoso apelido da cantora, mas mantendo a dramaticidade da letra e melodia, num tom acima ao da maioria das interpretações do disco, aproximando-a de sua essência de cabaré.

Em vários momentos, Ney Matogrosso se arrisca a interpretações mais ousadas e acerta a mão, presenteando o ouvinte com momentos sublimes. Em alguns, o cantor suplanta a ele próprio. Supera-se, por exemplo, na versão mais cadenciada de "Segredo"(Herivelton Martins/Marino Pinto), valorizando a sensualidade desse outro grande clássico, em detrimento da malícia que impôs a mesma música presente no maravilhoso O Pescador de Pérolas(1987). Em outros, nivela sua performance aquelas consagradas, caso da arrepiante “Medo de Amar”, uma das obras-primas de Vinícius de Morais(aquela que diz, depois de uma irretocável declaração de amor, que “o ciúme é o perfume do amor”), eternizada com maestria, entre outras, por Nana Caymmi. Ele mantem a intensidade da baiana num arranjo que começa suave, no solo com um piano tocante, para crescer em direção a um samba canção doído como a letra.

Duas outras interpretações revelam um Ney soberano. Até porque, as boas canções não haviam ganho, até onde vai meu conhecimento, defesas a altura de sua força e beleza. Exemplo de “Bicho de Sete Cabeças II”(Geraldo Azevedo, Zé Ramalho e Renato Rocha). A versão mais conhecida é a de Geraldo Azevedo, que até empresta dignidade a sua criação. Mas, Ney Matogrosso, amparado em um arranjo que transforma a música num quase chorinho, agiganta a nervosa composição dando-lhe ainda mais ritmo e impacto. A outra é “Invento”, do ótimo Vitor Ramil, gaúcho talentoso que precisa ser descoberto pela maioria dos brasileiros, cantada em Beijo Bandido, título tirado da música, com uma ternura que reforça as aveludadas letra e poesia.

Existem momentos, contudo, em que Ney perde a contenda. Casos de "A Bela e a Fera"(Chico Buarque e Edu Lobo, cantada com extremo vigor, não alcançado por Ney, por Tim Maia, e de “Fascinação”. Mas, é difícil, diria quase impossível, superar a interpretação da fantástica Elis Regina, para a versão de Armando Louzada e Dante Marchetti daquele clássico norte-americano. Ainda que, o artista tenha chegado muito perto da pimentinha com sua interpretação para "As Aparência Enganam"(Tunai/Sérgio Natureza), no disco de 19 que leva o título da música. Mas, ainda assim, sua "Fascinação" também emociona, enriquecida pelo lindo arranjo e pela bela introdução ao piano.

Ney acrescenta, porém, pouco a outras canções, como “Nada por Mim”(Herbert Viana/Paula Toller)”, que contrasta com a sensualidade imposta por Marina Lima, “Mulher sem Razão” ( Cazuza, Bebel Gilberto e Dé Palmeira), que tem na voz de Adriana Calcanhoto uma versão mais sincera, e “A Distância”(Roberto/Erasmo Carlos), insuperável na voz do rei e que ganhou de Ney uma interpretação burocrática. De qualquer forma, mesmo sem estar muito inspirado nesses momentos, o ex-Secos e Molhados, fez um álbum maduro (impossível ser diferente, para quem demonstrou uma imensa coerência em sua carreira) e que pode figurar com honra em sua longeva discografia. Uma obra para ser ouvida em horas tranqüilas e que leva a assinatura firme de um cara com muito a ensinar a todos nós. Longa vida a Ney.

Cotação: 4

Aceite esse beijo bandido:

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sábado, 7 de novembro de 2009

De volta pro aconchego

A bola no gol e o eco do grito de dezenas de torcedores ribombando embaixo da mangueira alheia a tudo. A velha e solene mangueira no barzinho sujinho e repleto de gente de preto e branco e uma cruz de malta brilhando no peito trêmulo de orgulho. O impávido gol ateando fogo na paixão. Gente que nunca se viu se abraçando como se todos fossem conhecidos de longa data. Que engraçado, né? Que mágica doce. Futebol é isso. Essa magia besta e cotidiana que acontece no instante em que a danadinha resolve rir do goleiro e estaciona ali entre as traves, estática, alheia como a mangueira. Sábado, sete de novembro de 2009 e o Vasco, ou melhor, enchendo o peito com todo o oxigênio que me é possível, o Vascão reocupa seu lugar no olimpo do futebol brasileiro.

Nunca joguei futebol. Nunca quis. Sou perna de pau, mas gosto de assistir a uma partida bem jogada. Assisti a vitória do Vasco sobre o Juventude por 2 a 1 no bar sujinho que não tem nome, do Adilton, um cearense pançudo, simpático e completamente despreparado para administrar um estabelecimento daquele tipo. Bar ao deus dará. Mas, Vascaíno convicto, teve a competência para juntar apaixonados como ele. E foi essa gente, uniformizada como que para um desfile, que foi se juntando no quintal da mangueira alheia, ocupando cada metro com sua palpável e densa expectativa de ver o time do coração voltar a série A do campeonato de futebol nacional mais visceral e sanguíneo do planeta. Chão de terra batida, a cerveja solta e olhos ávidos grudados na tela da televisão em completa sinergia, uma comunhão potente, eclesiástica. Uma missa e uma missão.

A missão, cumprida. Teve lágrimas nos olhos. Marmanjos chorando de emoção sob os olhos incrédulos dos pequenos filhos, fardados como o pai, alheios ao impacto da vitória rasgando o peito daquele cara tão menino. Que engraçado. Que mágica pura. Teve riso solto, buzinas alucinadas em carros alheios a tamanha alegria. A alegria da recompensa depois da sofrida tragédia, com todos os elementos da gênese grega, de ter sido rebaixado. Rebaixado. Que palavra feia. Agourenta. Agora, a remissão. Que palavra bonita. Vasco fênix, afastando uma doída tristeza do passado. E depois do final, a partida acabada depois do fim no bar sujinho sem nome, nem havia mais a televisão, aquele aparelho anguloso que sugou toda a nossa atenção por ansiosos 90 minutos. Havia a felicidade. E ela nos bastou. A cruz de malta avermelhada, cor de sangue, impressa nos corações acelerados pode enfim dormir, na noite de sete de novembro de 2009, em paz.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Tarantino vai a guerra

Uma longa e tensa conversa se forma. Dois homens sentados em uma sala em posições antagônicas: o algoz e o benfeitor. A raposa e o coelho. O cenário, uma fazenda francesa em pleno auge da ocupação nazista. O diálogo habilmente construído revela um vilão arguto arrancando com extrema frieza aquilo que pretendia ouvir do interlocutor. O final da conversa é dramático e termina em carnificina para o horror de quem acompanha aquela espécie de pesadelo. Parece até cena de algum faroeste, corroborada inclusive por uma trilha que lembra um trabalho do diretor italiano Sergio Leone, mas é na verdade um filme de guerra, assinado pelo cultuado Quentin Tarantino. Estou falando de Bastardos Inglórios(2009), uma investida alucinada desse cineasta num gênero que há muito não trazia qualquer surpresa aos amantes da sétima arte.

É bom salientar, de antemão, que Bastardos Inglórios não é um Tarantino(o figura sentado ao lado da loiraça na foto abaixo) absoluto. Em alguns momentos até, o longa-metragem navega tranqüilo na tradição, no convencional, como se pilotado por um desses cineastas norte-americanos medianos comprometidos apenas com a bilheteria. Mas, há elementos de sobra no transcorrer da história que deixam claro que a obra em questão tem um algo a mais, diferenciais com uma reconhecível e valorizada assinatura. Estão lá, como em Kill Bill e Pulp Fiction, as referências ao admirável mundo pop que fez a cabeça de milhões de simples mortais, desde a atmosfera do western spaghetti, a praia em que reinou Leone, até as intervenções musicais a princípio desconectadas com o tempo real da ação, mas que casam perfeitamente com a cena.

A trama é quadrinhesca, mais uma característica das obras do diretor. O filme é dividido em vários capítulos, habitados por personagens que beiram a caricatura e têm perfis bem definidos. Os bastardos do título são uma trupe de cruéis vingadores, uma espécie de polícia secreta norte-americana, formada para matar qualquer nazista que aparecesse pela frente. Liderando os inglórios está Aldo Apache, vivido por um farsesco Brad Pitt, o boi de piranha da produção para angariar público. A macabra ordem dada pelo chefe aos comandados é a de que cada um precisa reunir 100 escalpos dos soldados de Hitler. A história paralela traz a tona uma rancorosa judia Shosanna (Mélanie Laurente), traumatizada pela chacina da família e que encontra, anos depois, a perfeita oportunidade de se vingar dos impiedosos nazistas, incluindo aqui Adolf Hitler. É esse ápice também o momento do crossover de todos os personagens.

O fio condutor, espertíssimo, dessas duas tramas é exatamente o vilão mor do filme, um misto de detetive e matador de judeus, interpretado com maestria pelo excelente Christoph Waltz. Ele vive Hans Landa, um homem inescrupuloso e desalmado que interage acidamente com todos os mocinhos, se é que podemos chamá-los assim, de Bastardos Inglórios. Landa é o emblema do longa-metragem de Tarantino, no qual a ética e a benevolência são substituídas pelo cinismo e pelo desamor. Até a possibilidade de um romance, entre Shosanna e um soldado e candidato a ator nazista, vivido por Daniel Bruhl, é atropelada pela violência e sede de vingança. Ninguém é bonzinho no filme. No final, todos têm culpa, todos são um bando de bastardos sem a mínima glória.

Apesar das motivações objetivas e secas que levam todos a matar, a violência na fita é surpreendentemente arrefecida. Não se vê aqui aquele vale de sangue produzido fartamente nos outros filmes de Quentin Tarantino. O interessante é que o autor parece se focar mais na tensão e no suspense para contar uma história bem objetiva. O diálogo inicial, descrito rapidamente no início dessa resenha, é extremamente feliz. Assim também como nos encontros de Landa com Brad Pitt, um deles hilário, momento em que o bonitão, disfarçado de italiano, imita o Marlon Brandon lacônico de O Poderoso Chefão, obra-prima de Francis Ford Coppola.

A precisão do texto se junta às referências pops impressas pelo cineasta. A já citada linguagem das HQs sentida na arquitetura dos personagens, a homenagem ao compositor Ennio Morricone, a sublime inclusão de um David Bowie pouco conhecido cantando "Cat People(Putting out Fire)", resgatada do filme A Marca da Pantera, de Paul Schrader , no momento em que Shoshanna vizualiza seu plano incendiário, a divisão em capítulos e as inserções de tipias bem setentistas para identificar os bastardos... Toda essa reciclagem, a qual os fãs do diretor já se acostumaram, dá um toque novo, inesperado e moderno a esse filme de guerra, segmento que poucos têm coragem de incursionar e ousar. O despachado Tarantino entrou nessa seara e mostrou que pode dar uma saudável sacudida no gênero. Claro que do seu jeito autoral e mesmo sem o vigor cinematográfico que impôs no clássico Cães de Aluguel e Pulp Fiction, para mim ainda seus melhores trabalhos. De qualquer forma, Bastardos Inglórios é um filme acima da média, um programão para quem quer diversão criativa e inteligente.

Cotação: 4

Sinta o poder dos bastardos:

http://www.youtube.com/watch?v=v4ug2PGniMM